Páginas

sábado, 25 de outubro de 2008

O MORALISMO E A HIPOCRISIA INERENTE AO SISTEMA

Quando eu era criança houve uma infestação de piolhos daquelas em minha escola, eu mesmo parecia ter sangue doce presses insetos, vivia coçando a cabeça como se perseguido por questões intermináveis. Mamãe ficava doida com o problema, brigava comigo e minhas irmãs como se tivéssemos alguma culpa, enchia nossas cabeças com um pó chamado Neocid, que vinha numa latinha redonda e chata como as de cera de sapato e depois tapava com lenços. Com tudo eu me divertia, fazia de conta que estava fantasiado de pirata e saia correndo pela casa brandindo uma daquelas espadas de plástico.

Mas alguns pais encaravam o problema de forma radical e insensível, simplesmente mandavam raspar a cabeça dos filhos, como quem hoje reseta o HD do computador pra se livrar de algum vírus. E como raspar cabeça, usar lenço e ficar se coçando não eram coisas muito agradáveis, era na prática uma coisa embaraçosa, a infestação logo virou um tabu entre os alunos, ninguém queria ser acusado de "estar com piolho" ou disseminando o problema. Então veio aquela aula de ciências...

Nossa professora queria fazer um experimento científico com a turma e pediu para que nos aproximássemos de sua mesa de trabalho, lá na frente da sala de aula. O Ruy era um menino orelhudo e muito risonho que gostava de puxar o saco da professora, seu pai era um desses radicais que mandara raspar a cabeça do menino logo que fora informado do problema, mas um grande tufo de cabelo fora deixado bem acima da testa, como uma franja, sabe-se-lá por que.

Pos essas razões do destino a nada perspicaz professora tinha intenção de nos brindar com uma interessante demonstração prática de energia estática. Quando nos acercamos da mesa a moça já tinha reunido uma pequena quantidade de papel picado em cima de uma cartolina branca e estava munida de um grande pente de cabelos, um calafrio percorreu todo o grupo. Olhando à sua volta a moça falou de maneira amigável e jovial:

- Olha gente, para poder fazer essa experiência, eu vou precisar da colaboração de um de vocês. – todos se olhavam em pânico - Então? Ninguém quer ajudar a tia? – Claro que não né? Eu que estava bem atrás vendo que alguém ia se dar mal fui chegando mais pra frente e quase me ferrei, porque na mesma balada a professora passou a mão no braço de Ruyzinho que estava do meu lado e decretou:

- Vamos lá Ruyzinho, você que é o meu braço direito, vem pra cá. – Quem mandou ser puxa-saco? A mulher pegou o garoto pelo braço e foi metendo o pente naquele franjão esquisito. A experiência era daquelas de passar o pente no cabelo e depois puxar os papeizinhos picados com a energia estática que se formava com a fricção ou algo assim, mas o que surpreendeu todos foi o aparecimento de um enorme, gordo e asqueroso piolho.

O inseto bateu com um estrondo imaginário na folha branca de papel se debatendo em câmera lenta com as perninhas pra cima. Imediatamente todas as crianças saíram correndo para o fundo da classe gritando como se acabassem de se deparar com o próprio Conde Drácula. Junto da mesa ficaram a professora e o atordoado Ruyzinho que, não sei se em função da vergonha ou do pânico, não moveu um pé do lugar em que estava.

Apesar de também estar infestado por piolhos, como todos os meus colegas, eu também corri pro fundo da sala e fiquei lá fazendo a cena de apavorado. Depois me senti envergonhado, porque era sacanagem o que estávamos fazendo com um colega de classe. Anos depois descobri que nossa reação não era única na sociedade e que até tinha um nome super pomposo: Hipocrisia.

Pois bem: a morte da menina Eloá, ao invés de abrir um espaço pra reflexão, nos proporcionou um grande show de hipocrisia social. Só fui me dar conta disso quando assisti ao Jornal Hoje do dia 20 de outubro, no qual a dupla de âncoras (Sandra Annenberg e Evaristo Costa) recebeu o psiquiatra Raul Gorayeb com a intenção de opinar sobre os acontecimentos funestos daquela semana.

Costumeiramente os jornalistas da Globo adotam uma postura pseudo-ética em relação aos fatos, como se tentassem pairar acima do sensacionalismo repetitivo das concorrentes, como se fossem mais sérios e íntegros que seus colegas. Mas a verdade é que todos buscam a mesma coisa: as conclusões rasteiras em torno da questão enquanto esperam a chegada da próxima notícia escabrosa. Aprofundar pra quê?

Foram pegos de surpresa quando, ao invés de reforçar o lugar comum armado pela emissora, o psiquiatra começou a propor um debate mais amplo da questão, segue então trechos da entrevista:

Raul Gorayeb: ... A sociedade exige que os jovens aprendam a ter prazer e sucesso a qualquer custo, não importa o preço que se pague. Hoje em dia você é instigado a não aceitar falhas, perdas, insucessos, e reagir muitas vezes de uma forma bombástica quando as coisas não estão indo bem. Onde ficou, no nosso processo educacional, o lugar para que as pessoas aceitem que a vida também é feito de insucessos e problemas?

JH: Sandra Annenberg - (interrompendo de maneira abrupta e incisiva) Desculpa doutor, mas o senhor está querendo dizer então que ele (Lindemberg - o assassino da menina) é uma vítima do sistema, o senhor. o coloca como vítima?

Raul Gorayeb: (sem perder a calma, nem se abalar) Eu não o coloco como vítima, mas todos nós somos frutos de uma sociedade, a palavra vítima tem um desvio meio moralista (Meio? A jornalista bem que podia ter ficado quieta não é?). Somos frutos de uma sociedade na medida em que somos educados por ela os valores que a gente recebe são os que a sociedade difunde e se te ensinam que você tem que ter prazer a qualquer custo, quando você está insatisfeito você tem que encontrar uma maneira de não ficar mal na fita.

O Programa teve uns três blocos, sempre com o psiquiatra. No intervalo de um destes foi exibida uma reportagem intitulada, se não me engano: Meninas que namoram homens mais velhos. Será que isso pode ser um problema? - Era algo assim, uma reportagem moralista, tendenciosa e sensacionalista; tentava fazer um link com a pedofilia – o atual vilão mundial - para explicar o que aconteceu. Uma jogada digna da dupla dinâmica Datena e Magno Malta, fiquei surpreso de ver algo do gênero num telejornal da Globo, daí seguiram perguntando:

JH: Eloá começou a namorar Lindemberg aos 12 anos. Não é cedo demais para começar um namoro sério?

Raul Gorayeb: É difícil estabelecer fórmulas. Cada pessoa é de um jeito. É evidente que, quando mais jovens, a diferença de idade fala mais alto, mas se a gente tivesse falando de uma mulher de trinta e de um homem de 45 a diferença era maior e não seria tão marcante. (Dá-lhe professor! Mas a jornalista não desistia).

JH: Sandra Annenberg: Mas uma criança ainda não está formada e pode haver uma relação de desequilíbrio, de manipulação pelo homem mais velho, não?

Raul Gorayeb: Mas outra coisa em que a gente tem que pensar é que empurramos os jovens para uma maturidade precoce, para a atividade sexual, (e a putaria nas novelas da Rede Globo? Agora querem pagar de moralistas?) como se, sem isso, a pessoa não pudesse entrar no circulo das pessoas importantes. (Alguém aí já parou pra ler a letra de um desses Funks que a molecada adora?)

JH: O que devem fazer os pais que têm filhas adolescentes namorando homens mais velhos? Devem proibir?

Raul Gorayeb: Para relembrar uma tragédia artística temos a história de Romeu e Julieta, na qual se vê que a influência dos pais pode ser boa, mas também pode ser catastrófica. O que os pais têm que dar aos filhos condições para identificar por conta própria o que é bom ou não para eles mesmos, mas nunca fazer a escolha no lugar dos filhos, fazer por eles o dever de casa ou escolher os namorados, por exemplo.

JH: Evaristo: Mas vão orientar.

Raul Gorayeb: Orientar e dar condições é uma coisa, mas decidir no lugar de é outra, mesmo porque assim você não ajuda o sujeito a aprender a tomar decisões, tem que haver uma liberdade, um espaço, para poder errar e para poder corrigir o erro. A intransigência é o maior problema nessas horas.

O que me irritou nesse programa da Globo não foi só a maneira moralista com que trataram o tema, mas a maneira como ignoraram a possibilidade de o discutir de outra maneira, deliberadamente desprezando algumas verdades humanas que lutam por vir à tona. Muitas são as conseqüências desse fato: a imbecilização do indivíduo, a banalização do sexo e da violência e instigação ao consumo desenfreado... O único problema é que, de vez em quando, alguém vai pagar por isso. Pelo menos os índices de audiência estão subindo...

O link para a entrevista segue abaixo, assistam:

terça-feira, 21 de outubro de 2008

UFA! UMA ANÁLISE HOMOFÓBICA DO COLUNISMO SOCIAL

“É chique: gente descolada que fala de sexo,
política e moda com ousadia e elegância.
É o fim: Gente cheia de pudores.
O mundo enjoou de falsos moralistas. Ufa!”

Ahê, depois nóis é que é ruim velho, aliás: “eles é forte, mas nóis é ruim!” - e o meu Johnny não é Walker. Não sou muito de ler jornal aos domingos, quando quero saber de alguma coisa me penduro na Internet, ademais os cronistas que mais gosto não são publicados aqui, exceto o Agamenon, mas esse não conta. Daí que folheando um jornal local me deparei com essa nota aí - transcrita em epígrafe - numa coluna social e que me pareceu digna de algumas considerações estrambóticas; a título, obviamente, de bazófia e sedição:

É chique: - Como é comum acontecer nessas colunas o autor se coloca na posição de sugerir o que é bom ou não - gente descolada - Que porra será essa? Já ouvi falar de Retina Descolada, aliás, uma excelente banda punk local, fazia um estilo pós-congo com um moicano style na cabeça da casaca - que fala de sexo, política e moda com ousadia e elegância. - Para tudo! Stop in the name of fuck!

Como é que pode uma pessoa misturar três coisas tão diferentes como política, sexo e moda no mesmo balaio e quinto: ainda fazer isso com “ousadia e elegância”? Termos afrescalhados e idiotas, sendo que a palavra elegância caiu em desuso no último acordo ortográfico de 1990, só é usada por pessoas sérias com a intenção de tirar sarro da cara de gente pedante ou ignorante, ou ambos os dois, sem pleonasmo nem nada.

Já imaginou falar de política, sexo e moda com ousadia e elegância?

- Não, pois é isso que eu to te falando, quero me eleger deputado pra com o auxílio paletó poder comprar um terno da Hugo Boss e pegar aquela assessorinha menor de idade lá da minha comunidade!”

Ousadia do parlamentar e audácia da pilombeta! (salve Didi Mocó e o Muçum nas alturas “di fatis”). Mas fico pensando como é que se falaria de sexo com elegância... Será que as “locomotivas da sociedade” andam freqüentando Sex Shop? E se é assim, qual será o “grito da moda” nesse sentido? Dá até medo de perguntar. Imagina uma dondoca falando pra outra: deixa de ser boba menina, sexo anal é só pra gente que faz uma vez por ano! Cai matando Zoraide!

Mas continuando as considerações vem a segunda estrofe: É o fim: - Traduzindo livremente do boiolês - sem preconceitos evidentemente – ser “o fim” é uma forma bem dramática de dizer que alguma coisa é “o maior palha”! - Gente cheia de pudores. - Pudores é forte né? Quase um palavrão, simplesmente flatulento - O mundo enjoou de falsos moralistas - Se o mundo, enquanto entidade, pudesse enjoar de alguma coisa, certamente esse tipo de “jornalismo” teria a prioridade - Ufa! - Eu a-do-rei essa exclamação do final, digna de uma senhora elegante, de retina descolada, após um dia cansativo de ousadias, batendo pernas pelas botiques, botequins e cabelereiros da cidade.

É impressionante que coisas como essas sejam pensadas ainda nos dias de hoje, mais ainda que sejam ditas, imperdoável que sejam escritas e lamentável que sejam publicadas. Tá doido meu! Antes de terminar quero dizer que este texto é puramente ilustrativo e as pessoas envolvidas não condizem com a realidade, especialmente a Tia Clotildes. Não quero aqui fomentar o ciúme e a competição entre os meninos e meninas que se dedicam à nobre arte de puxar o saco dos ricos e poderosos. Em tempo: sedição quer dizer, entre outras coisas: perturbação da ordem! E ademã que eu vou em frente!

ONDE OS FRASCOS NÃO TÊM VEZ

Amores e dores não são as melhores rimas
nem cores e sabores
e todas essas coisas afins ...
Sei lá o que são as melhores rimas!
Se me pegar embolado com estrofes aparta
e reboca pra fora do botequim.
Porque a ressaca é o castigo dos frascos
e a intenção é chegar vivo no fim...

Alberto Caieiro - Psicografado por JackO

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

SABENDO O CERTO POR VIDAS TORTAS

Recebi um texto - atribuído ao escritor baiano João Ubaldo Ribeiro - sobre a desonestidade do povo Brasileiro, como se todos sofressem de desvio de caráter e que - apesar da gritaria contra a roubalheira das instituições público/políticas – fossem capazes de passar a mão e levar pra casa alguma coisa do trabalho no melhor estilo “a ocasião faz o ladrão”. Muita gente entende que “o que é de todos não é de ninguém”... Eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também. Então você não tem compromisso porque o tudo é o nada, muito filosófico isso, explica, aliás, porque existem tantos pobres meninos e meninas ricos.

De certa maneira o escritor está certo, afinal, convivemos com pequenas malandragens em nosso cotidiano de maneira tão simplória que tem hora que a pernada passa despercebida e quem consegue premeditar o breque se sente mais esperto e até vai pra casa feliz. Em Bento Ferreira mesmo tem uma ótima padaria que reina absoluta num ponto privilegiado do bairro onde fazem uns pãezinhos doces muito gostosos que são arrumados nas prateleiras de maneira que os mais velhos fiquem na frente dos mais novos. Daí você pergunta, mas não deveria ser o contrário? Bom, não do ponto de vista do fabricante.

O dono da padaria – e isso é também muito comum também nos supermercados – provavelmente instruiu seus funcionários a colocar os pães mais antigos na frente simplesmente porque a maioria dos consumidores pega o produto sem verificar a data de fabricação. Não sei se podemos classificar isso como desonestidade se pensarmos que o consumidor vai chegar em casa e comer o pão, mas vender uma mercadoria de dois dias atrás pelo mesmo preço de uma que acabou de ser fabricada e ainda a colocar em evidência, praticamente escondendo a mais nova, não é um jogo dos mais leais.

E quem é que faz diferente dos padeiros? Daí que vem aquela famosa frase idiota: “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Ou seja: “em rio que tem piranha jacaré nada de camisinha”. Mas é muito chato viver dessa maneira não é? Como se fossemos uma nação de maníacos obsessivos, recontando, re-checando; testando a durabilidade, a validade, a fidelidade de tudo e de todos. Que liberdade é essa então? “De que me vale ser Edith Piaf se não posso fazer o que me der na telha”? Já pensou se para cada pessoa contratada tivéssemos que colocar uma outra pra tomar conta da primeira? Mas não abre o seu olho não japonês...

E se todo casal tivesse que contratar gente pra fiscalizar a fidelidade do parceiro? Porra meu, ou confia ou joga fora no lixo, não vale a pena viver assim. Daí alguém resolve provocar o maridão, galhudão - Diguvon Spoton da Bayer - desconfiadão:
- Você num confia no seu taco não ômi, tem que botar gente pra tomar conta da vida de sua mulé?
- Olha maluco: no meu taco eu confio, o que eu num confio é na caçapa dela...

terça-feira, 7 de outubro de 2008

MEU PRIMEIRO CAVALO FOI UMA ÉGUA!

A frase título parece muito doida, e é mesmo. Sabe onde foi que eu ouvi isso? Ontem a noite na novela A Favorita - Digo que ouvi, por que enquanto a patroa assiste a novela eu costumo ler - A personagem daquela menina bonitinha, loirinha de cabelo curto, enfim, a menina explicava isso pro namorado; Um cara que era cafajeste, pegador de puteiro, mas que agora é um empresário seríssimo e mau humorado, quase um monge.

Novela tem dessas coisas, as pessoas mudam de caráter como quem muda de roupa. Ora, mudar alguns hábitos e até sua atitude com relação ao mundo é uma coisa, mas mudar o seu próprio jeito de ser é complicado. Sabe como chamam isso? Teledramaturgia. Daí que me saem com essa pérola do non sense: “meu primeiro cavalo era uma égua”. Seria o equivalente a dizer: minha primeira esposa era um homem - o que, aliás, pode acontecer até nas melhores famílias, segundo ouvi dizer, não sei... - Mas e você, já pensou?

Bom, pelo menos serviu pra me divertir. Fiquei imaginando algumas outras situações engraçadas pra transpor essa frase, por exemplo:

O casal conversa enquanto caminha até a Lan House da periferia, ele displicentemente fala: “Você sabia que meu primeiro carro era uma bicicleta?”

Dois ambientalistas paqueram durante manifestação da Sociedade Protetora dos Animais, ele tenta sem muito sucesso convencer a companheira às práticas de acasalamento e murmura com emoção: “Podes ter certeza minha querida: o primeiro pinto que pia é a perereca!”

Batman e Robin lembravam a infância e o cara bat-rememora orgulhoso os carnavais de outrora: “A primeira vez que me vesti de super-homem foi com a roupa da mulher maravilha!”

Pra arrematar com uma piada local: dois percussionistas conversam sobre as variações harmônicas entre um tambor e um tamborete quando um deles me sai com essa: “Não cara, meu primeiro reco-reco era uma casaca!”

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

ENSAIO É ENSAIO - FILME É FILME!

Sexta a noite. Parada estratégica na praça de alimentação do shopping para um jantarzinho barulhento, depois um cineminha. Por que não? Vejo poucas pessoas conhecidas quando vou a esses lugares e acho curioso isso. A maioria das vezes em que vou ao supermercado, por exemplo, encontro sempre de três a quatro amigos e conhecidos, minha geração parece mais prática e acomodada a lugares onde não se cobra pra estacionar... Ainda.

Uma das coisas que mais incomoda em shopping é o barulho, uma balbúrdia louca que - em face da quantidade de informação visual - passa despercebida a muitos. É um som reverberante comum aos lugares fechados e lotados e que irrita, desorienta, geralmente fico louco para ir embora. Conversando com um grupo de cegos eles me disseram que se sentem assim também, o som é uma de suas principais ferramentas de orientação. É uma merda, mas não vai mudar: não é pensado para os que têm ouvidos para escutar.

Diversão é observar as pessoas. Tantas, diferentes e únicas, a vaidade as torna engraçadas e inacreditáveis. Especialmente isso. Na mesa ao lado tem um casal que traz o filho por uma espécie de coleira, como um cão. O menino, curiosamente, se comporta como tal, tentando se soltar e correr em liberdade, só faltava latir. Alguns passam e comentam, os pais fingem indiferença e devoram enormes hamburguers com Coca e batata frita. Ali estava o link para o filme que iríamos assistir: Ensaio Sobre a Cegueira:

Fernando Meirelles é um diretor requisitado em Hollywood atualmente, talvez o único daqui que realmente tenha se tornado mainstream. Depois do sucesso mundial e do reconhecimento obtido com Cidade de Deus o diretor partiu de vez para produções de primeiro mundo. Assisti a uma longa entrevista dele no programa Roda Viva da TVE, comandado pela ex-global Lílian Wite Fibe – visivelmente deslumbrada com a presença do diretor -, cujo tema central era o lançamento de seu novo filme.

Meirelles tem um blog - há muito não atualizado - que nos dá uma grande panorâmica sobre o fazer cinematográfico, as difíceis decisões na busca por um produto íntegro e comercial ao mesmo tempo. O diretor rasga o verbo, comenta de situações constrangedoras que um artista tem que administrar para ser peão da indústria norte americana, tanto que quando ficou sabendo que estavam traduzindo o blog para inglês achou melhor parar de escrever. Algumas pessoas da Miramax mereciam ter lido.

Ensaio Sobre a Cegueira acabou se revelando uma história difícil de ser traduzida para a linguagem cinematográfica, Meirelles teve trabalho em encontrar uma edição que não chocasse tanto a platéia e esse foi talvez o problema. Se a idéia não era espantar (nos dois sentidos) o espectador, porque então escolher uma história que inclui, por exemplo, duas seqüências de estupro? Eis a questão. Não vou dizer que o filme é ruim, nem que é descartável como se exige do cinema pipoca americano, o problema é que tentando agradar troianos e conciliar abismos o diretor se perdeu e não conseguiu produzir um filme visceral daqueles para se guardar na prateleira de casa e rever de vez em quando.

O curioso é que – entre tantas concessões - um das cenas que Meirelles não aceitou mudar foi a dos cães, porque estava no livro de Saramago e - mesmo com rejeição do público em test screens - o diretor bateu o pé pra cachorrada ficar. Volto então minhas lembranças para o menino cão na praça de alimentação e o barulho que desorienta aqueles que não enxergam. Essa é a luta do dia a dia: perceber-se vivo, manter-se desejado (comercial) e íntegro ao mesmo tempo. Parece fácil não é? Então vai lá fazer sabichão!