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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

SONHOS DE UM ESCRITOR POP



Eu vivo sempre no mundo da lua

Porque sou aventureiro
Desde o meu primeiro passo
Pro infinito

Guilherme Arantes, Nosso Lindo Balão Azul

Desde pequeno sempre tive costume de me entreter com histórias, começou com revistas em quadrinhos, os chamados “gibis” – que, aliás, adoro até hoje – e por volta do final da infância vieram os livros. Havia editoras que circulavam listas de suas publicações quando eu estava no primário, foi assim que fiquei conhecendo “A Turma do Posto Quatro”. Ainda lembro, especialmente, a deliciosa emoção quando chegava pelo correio o pacote com os livros. Depois de ler um bocado, comecei a querer subverter a lógica de consumidor e fornecedor; devia ter lá pelos dez, doze anos no máximo.

 
Como tinha mais fantasia do que experiência de vida, enfiei em meu primeiro roteiro as coisas mais bestas que me rodeavam. Imaginei um misterioso caso de sequestro – era muito falado o do menino Carlinhos - em que eu e meus amiguinhos da época – Zeller, Flávinho, Teba, sei lá mais quem – ajudávamos, nada mais nada menos, do que Didi e os Trapalhões a resgatar o filho do primeiro que havia sido raptado. Daí a confusão ia parar na fazenda Fundão dos Índios, onde a coisa virava faroeste e nossa turma recebia o reforço de minhas irmãs e meus primos Felipe, Edilson e Everaldo.

Aquele meu primeiro esforço literário foi escrito à caneta esferográfica em algum dos meus rabiscados cadernos de escola – desenhar era outro hobby para espanar o tédio - e eu me sentia feliz da vida de poder arrumar para aquelas linhas bem traçadas uma utilidade mais nobre e divertida do que as aulas de caligrafia. Não pergunte por que me aborrecia estudar ou porque eu detestava a escola; posso me considerar hoje um cidadão de meia idade bem resolvido com isso e desajustado com o resto, mas nunca consegui chegar a uma boa resposta. Aliás, cheguei sim, mas...

Um dia meu mundo caiu: alguma das muito sensíveis e observadoras professoras nos espezinhou com a informação – sei lá por que – de que os pequenos livros de bolso da Ediouro que nós adorávamos não eram escritos por fedelhos bobocas como a gente. Apesar da linguagem descolada e de toda fantasia, o autor era nada mais, nada menos, que um adulto! Consequentemente, um sujeito careta e cheio de regras como ela própria. A danada devia estar querendo enquadrar a molecada e deve ter saboreado minha expressão de decepção. 

Apesar de tudo, dei um jeito da turma salvar o filho do Didi das garras dos malvados sequestradores piratas do Rio Fundão, não sem a ajuda de cowboys americanos, índios botocudos e da polícia que, como sempre, só chegava no final para prender os meliantes.

Numa de minhas tradicionais pescarias nas manhãs de sábado pelos parcos sebos de Vitória dei de cara com um daqueles livrinhos da Turma do Posto Quatro. Resolvi descobrir afinal quem era aquele autor que eu ainda admirava e guardara na memória do coração.
                                                                                          
                     
Helio do Soveral Rodrigues de Oliveira Trigo (1918-2001) tem até um blog muito bacana o homenageando e o apresenta como “o maior escritor pop do Brasil”, a iniciativa internéktica chama-se “Memorial Soveral” e é escrito por Dagomir Marquezi, um especialista na obra desse autor hoje tão pouco lembrado. Soveral era nascido em Portugal, mas emigrou com a família para o Rio de Janeiro ainda criança e morou em Copacabana por aproximadamente sessenta anos. Começou na imprensa e foi, por exemplo, o último repórter a entrevistar Noel Rosa. Veio a falecer aos oitenta e dois anos em Brasília, cidade onde residiu no final da vida para ficar perto da filha.

Foram trinta e cinco volumes da Turma do Posto Quatro publicados entre 1973 e 1979 – aliás, com o pseudônimo de Luiz do Santiago - o que prova que minhas contas estavam certas: no final de 1979 eu era ainda um pirralho completando quatorze anos. Mas Helio do Soveral escreveu também a série “Os Seis” com grande sucesso e pseudônimo de Irani de Castro, além de zilhões novelas para o rádio, chanchadas famosas, histórias em quadrinhos para as revistas Spektro e Pesadelo que eu também lia avidamente. Enfim, como pode uma pessoa povoar incógnita tanto a nossa vida? Fico pensando o quanto Soveral me influenciou para além daquela minha primeira investida literária...

Essas influências a que somos expostos, sugerem direções, resoluções e a infinita busca por expressão. Ser original não é fácil, apenas o somos na medida em que traduzimos antigas ideias numa linguagem atual, em contexto moderno. Não sei se realmente criamos alguma coisa. Queremos o que a maioria honesta quer: viver dignamente fazendo o que gostamos e nos identificamos. Eis a importância de exercer a criatividade: buscar lá dentro quem você realmente é. Sem isso o povo pira, vemos exemplos grotescos da loucura humana todos os dias.

Por isso tantas pessoas dizem que não se deve abandonar os sonhos, porque só alcançamos nossa essência quando transformamos sonhos em realidade. Não porque sonhar seja algo assim tão transcendental, mas porque no processo dessa transformação somos obrigados a amadurecer. Além do mais, e se estivermos mesmo todos ataviados a sonhos dos quais não podemos despertar? Como numa prisão?

Pois, (ora) nem mesmo Helio do Soveral conseguiu transformar todos os seus sonhos em realidade, naquela que deve ser sua última entrevista, concedida à Dagomir Marquezi e publicada na revista VIP de maio de 1998, com relação ao reconhecimento público e financeiro é perguntado ao autor:

- E se você fosse americano?

- Ah, aí eu estaria vivendo num palácio...


domingo, 13 de janeiro de 2013

INVISIBILIDADE EM EXPOSIÇÃO

Originalmente publicado no Caderno Pensar de A Gazeta no dia 12 de janeiro de 2013

“Insanidade: fazer a mesma coisa várias e várias vezes
e esperar resultados diferentes.”
Albert Einstein
Nos últimos meses de 2012 a Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo promoveu uma série de seminários sobre preservação do patrimônio histórico cultural. Como muita gente, eu ainda nem me tocara para a diversidade desses patrimônios; os monumentos geológicos, por exemplo. Um especialista na área, Everaldo Nunes explicou em sua palestra que para a geologia as praias são territórios instáveis e sua mutabilidade vista como coisa natural, “preservar” nem teria assim tanto sentido. Desculpem-me Everaldo e os geólogos se não os captei muito bem, mas como dizia Tom Jobim, adoro falar sobre coisas que não entendo. Quero é traçar uma paralela.
Nos seminários se abordou também os bens culturais imateriais como as bandas de música e outras manifestações populares. Alguém disse que lembrava o grupo do “Tio Fulano” que infelizmente não existia mais. Para os que se debruçam sobre as questões musicais, essa finitude é tão “corriqueira” como o desaparecimento das praias. Além de gravar, a forma tradicional de preservar música é escrever a partitura e transmitir o conhecimento aos que vão chegar, para que possam reproduzir aquela ideia e também desenvolver a linguagem própria de seu tempo, perpetuando o raciocínio lógico formador dessa tal imaterialidade. 


Juca Magalhães apresentando o Seminário em São Pedro do Itabapoana
 
A preservação da cultura musical através do ensino e transferência da prática parece o óbvio ululante que o Nelson Rodrigues falou, mas não é não. Só fui me tocar pra isso depois de me encontrar maduro e quando topei ensinar violão e guitarra para duas meninas do Algazarra Arte & Coral, viés de desenvolvimento dentro do grupo que vem ganhando força. Essa manifestação tão antiga em nossa cultura (um pequeno coro) é exemplo desse contraste: a exposição de sua invisibilidade; digo, a atenção carinhosa da mídia e das plateias e a relutância dos gestores públicos e privados quanto ao fomento e apoio continuado a manifestações do gênero.
                                                                                   
O Algazarra surgiu do esforço da regente Alice Nascimento que há mais de dez anos leciona música em projetos sociais. Muitas dessas iniciativas oferecem oficinas de música sem a pretensão de formar profissionais; servem para dar uma introdução e reforçar o bordão de “tirar as crianças da rua”. Nesse meio existia uma elite de jovens que queria mais; um dia, no final de 2010, pegaram Alice “de ladeira abaixo” e cobraram a própria criação que aconteceu no ano seguinte. O nome evoca gritaria e confusão, mas na verdade é sinônimo de alegria; foi escolhido pelos próprios 35 coristas num barulhento “brainstorming”.
 
Canto e criatividade são formas de sustentação do grupo: rifas, trabalho voluntário, apoio de padrinhos e cachês de apresentações ajudam a viabilizar essa Algazarra. O espaço de ensaio foi conseguido pelos meninos de Itararé junto ao Ailton, presidente da Associação de Moradores, que emprestou a sala. Em meio ao vizinho alarido das igrejas evangélicas, o grupo desenvolve um repertório entre clássico e popular, ganhou moral em apresentações importantes e, apesar da notória carência financeira, é frequentemente convidado para aparições gratuitas em ricas instituições comerciais e públicas – com uma ponta de ironia – especialmente no natal. Como explicar aos pais que seus filhos vão cantar de graça em um suntuoso “templo de consumo” quando mal têm dinheiro para se locomover de ônibus?
             
Esse descaso para com as ações culturais é fator notório de anomia e também escancara o pouco apreço quanto à seriedade da labuta musical. Segundo Robert King Merton na Wikipedia, “anomia é a incapacidade de atingir os fins culturais e quando ocorre devido à insuficiência dos meios institucionalizados gera conduta desviante. A teoria explica por que os membros das classes menos favorecidas cometem a maioria das infrações penais e crimes de motivação política, bem como comportamentos de evasão como o alcoolismo e a toxicodependência”. 
Buscando lugar para ensaiar o Algazarra abordou uma conhecida instituição de ensino de Itararé, cujos alunos de classe média e alta se queixavam na mídia da insegurança na região. Pensaram que seria lógico para os gestores topar interferir na comunidade apoiando uma ação que a beneficiaria. Não pediram ajuda financeira, só o empréstimo de uma sala duas vezes por semana. A resposta foi uma distante negativa. Exemplo de que não é fácil mudar e continuaremos fazendo apenas o que se convencionou fazer: reclamar. Enquanto isso, a areia das praias do nosso tempo vem sendo engolidas pela violência que ninguém quer encarar, porque no final a culpa é simplesmente do mar.
Kamilla Kaiser se apresentando com o grupo e o professor Juca Magalhães


Quer conhecer mais e ver o Algazarra em ação? Vão aí três links de videos: o primeiro é do especial de natal da Gazeta, que ficou muito divertido:

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=JAX45efR8wY

o outro é o Algazarra representando o ES em Ipatinga, O mestre Rogério Coimbra quando viu esse video comentou no Facebook: "ainda existe uma esperança":

http://www.youtube.com/watch?v=lhjHlRz0FqA

O último é no CantarES desse ano, o grupo chutando o balde dos adultos, apresentando à capela uma música moderna de arrepiar.

http://www.youtube.com/watch?v=CvUBey0BVhk

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

BATE-BATE: HOMENAGEM AO RUBEM BRAGA



Verão doido, sol de lascar, calor dos infernos! E a água mineral que de repente acabou? Ligo correndo pra um telefone qualquer daqueles pregados na porta da geladeira e a moça do outro lado disse que não me conhecia. Então empatamos querida, darling, fófis: não faço a menor ideia de quem você seja. Imagino que trabalhe para um dessas empresas que entregam garrafões de água e botijas (cujo?) de gás. Cerveja talvez? Minha curiosidade não chega a tanto.

- Moço: pro rapaz bater a água aí na sua casa ele vai verificar a validade do galão. – Estranhei a frase como um todo, fiz a moça – tinha voz de moça - repetir só de sacanagem. E não é que ela repetiu? Então eu disse um distante "tudo bem" e desliguei com aquele sorriso sacana nos lábios, enquanto procurava no diabo do galão – que nós chamamos de garrafão - a sua validade da qual eu nem suspeitava e descobri que era 2013. Numa viagem mental relaxei pensando que 2013 ainda estivesse muito longe. Minha mulher passou comentando sonolenta que ficar sem água de manhã é pior do que assistir ao Big Brother. Penso que ao último há várias alternativas, para a água que acabou só nos resta esperar o rapaz vir “bater”.

Não sei se vocês repararam: mas esse “bater a água” que ela usou foi o negócio que me deixou com aquela sensação esquisita de Inspetor Clouseau. Comecei a pensar sobre essa palavra “bater”, aliás, um verbo que para mim nunca foi grande coisa, talvez pela sua ligação reativa com aquele outro, o apanhar, que me remete a lembranças infantis mal ranqueadas. Danei a matutar, desenvolver o tema, e descobri que o verbo “bater” pode ser usado numa embaralhada de situações, é uma espécie de coringa do PT-BR.

O nosso coração bate, tem gente mais sofisticada que diz que ele pulsa e pros mais animadinhos e escalafobéticos ele repulsa na batida dos tambores e na animação do carnaval que se aproxima. O liquidificador, ao invés de misturar o suco, bate. Os carros não colidem, batem. O relógio bateu não sei quantas horas da madrugada. Fulano saiu daqui e foi bater lá em Guriri. É comum dizer que alguém bateu o recorde. Enfim, o verbo bater é usado até para a masturbação. Inclusive a mental, especialmente a minha, como nesse pequeno texto “batido” nas teclas do computador, talvez para clarear as ideias numa puta manhã de sol.

Inspirada por Rubem Braga... Homenagem pelo seu aniversário de 100 anos, no próximo dia 12 de janeiro. Coisa que, espero, também não seja uma ideia muito “batida”...

Vitória, 09 de janeiro de 2013.