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sábado, 28 de novembro de 2015

O MAL DOS CRONISTAS


“Rubem (Braga) adorava dar em cima de mulher de amigo. Tinha uma boa saída para a sua falta de vergonha na cara:

– E você quer o quê? Que eu dê em cima da mulher dos inimigos?” 

Comentário atribuído a Raquel de Queiroz.


Na primavera de 1978 quando veio espairecer nas terras capixabas, José Carlos Oliveira estava muito mais preocupado com a repercussão do lançamento de seu livro Terror e Êxtase (particularmente o autor o chamava de 1001) do que com a badalação que poderia haver em torno de sua atormentada figura. Na página 114 de seu Diário Selvagem, por exemplo, Carlinhos se ressente da forma como foi retratado pelo colunista Hélio Dórea.

“27 de setembro – Fim das férias. Mesquinharias capixabas: nos dias de Maciel, Alaíde pediu uma nota sobre 1001 ao colunista Hélio Dórea. Não saiu nada. Hoje saiu. Ela se mostrou vitoriosa. Mulher ingênua! Saiu ontem uma nota no Ibrahim e o seu copiador daqui incluiu que sou chique, colunável em nível nacional. Só por isso. Gentinha de merda! Depois eu conto mais”.

Com esse desabafo furibundo Carlinhos demonstra ter algum entrevero em particular com o colunista – ou então a implicância era com os que se dedicavam ao, sorry periferia, assaz provinciano colunismo capixaba - e não propriamente com o gênero de coluna social. Afinal, valoriza a nota dada por Ibrahim Sued (1924-1995, considerado o inventor do colunismo social brasileiro) e ainda termina fazendo graça, mencionando um bordão que seria muito repetido pelos deslumbrados escarafunchadores da high society.

Desde o início da passagem de Carlinhos pelo Espírito Santo, confesso, estava com medo que sua fúria se voltasse na direção de meus pais. Afinal, os jornalistas Maria Nilce e Djalma Juarez Magalhães eram inimigos ferrenhos de seu prezado amigo e anfitrião - o então Governador do Espírito Santo, Élcio Álvares - e imaginava que críticas, inevitavelmente, apareceriam... E apareceram. Porém, ao invés de puramente ofensivos, os comentários forneceram um panorama bastante rico, único e real daquele período. 

Carlinhos, eventualmente, menciona frases popularizadas pela colunista Nina Chaves, famosa por introduzir moda e estilo na imprensa nacional, como na Página 105 ele fala: “Como dizia a Nina Chaves – qualquer descuido pode ser fatal”. Com isso esclareceu a origem de um jargão muito usado por Maria Nilce: “Todo descuido pode ser fatal”, provando que, como na televisão, também em sociedade “nada se cria tudo se copia”.

No início das férias Carlinhos ficou alternando estadias entre a Residência Oficial do Governador, em Vila Velha; visitas ao hotel Porto do Sol de seu amigo João Dalmácio, em Guarapari e a casa de Victor Martins em Manguinhos, onde, por sinal, botou olho gordo na beleza deslumbrante da namorada do amigo, a Judith. Naquela época, Vitória, Praia da Costa e Manguinhos eram núcleos distintos e distantes, não havia a sensação que hoje temos de estarmos na mesma cidade, separados por engarrafamentos.

Quando finalmente resolve visitar Vitória, ou mais precisamente o famigerado restaurante do Ferrinho, é que Maria Nilce e Djalma Juarez Magalhães (Páginas 121 e 122) são finalmente mencionados.

“Almocei com ferrinho. Apareceu M.N., a fofoqueira do Jornal da Cidade. Ferrinho me transforma o metabolismo; há algo ansioso nele e algo mais que ansioso: maligno. M.N. também. (...) A proximidade de pessoas doentes da alma – Ferrinho, Maria Nilce – provoca a perturbação psicossomática que me faz sofrer o estômago (...) Atenção: D.J.M., marido de M.N. e preterido pelo Élcio quando desejava ser vice-governador, é agente do SNI ou DOPS ou DOI-Codi, ou tudo ao mesmo tempo."

Maria Nilce autografando seu terceiro livro "Como o Diabo Gosta" que foi lançado justamente no Restaurante do Ferrinho
Diferente do episódio com o antigo colunista de A Gazeta é preciso levar em consideração que o desprezo que Carlinhos demonstra pela “fofoqueira do Jornal da Cidade” revela também uma subjetiva influência da amizade e de solidariedade com o Governador e sua esposa; ambos, sistemática e ingenuamente – na maioria das vezes - ridicularizados por Maria Nilce em sua coluna diária. A razão dessa birra seria uma mal explicada “traição” – mal explicada na minha memória – que levou os donos do Jornal da Cidade a fazer oposição ao Governo de Élcio Álvares de forma bastante aberta e folclórica. Como era época da ditadura, em que os companheiros da imprensa geralmente tocavam pianinho, com suas loucuras Maria Nilce consolidaria neste período a imagem de mulher guerreira e corajosa...


Capa do terceiro livro de Maria Nilce, lançado em 1979.
É interessante observar que Carlinhos fala de Maria Nilce como se já a conhecesse “de outros carnavais” e menciona que algo nela o perturba tanto física quanto emocionalmente. Ora, a colunista do Jornal da Cidade estava no auge de sua beleza exuberante e quem ler o diário vai perceber logo de início que o escritor era – para dizer o mínimo - um tarado pervertido contumaz. O fato de sequer mencionar os atributos físicos da “fofoqueira”, revela que Carlinhos, parecido com Rubem Braga - aliás, dizem que era mal dos cronistas – só tinha tesão mesmo pelas mulheres dos amigos. Vide a epígrafe. E para saber mais, no link abaixo, acesse o excelente texto abaixo de autoria de Juremir Machado, intitulado: O Canalha do Rubem Braga.



       NA PRÓXIMA EDIÇÃO

    O diário de José Carlos Oliveira ajuda a Letra Elektrônica a desvendar um episódio mal explicado da década de 1970. Para tanto vamos abrir os arquivos do Dops e revelar o que o Exército pensava sobre o casal dono do Jornal da Cidade...



sábado, 21 de novembro de 2015

O VENTO SOPRA NO MICROFONE

Saio de casa faltando dez minutos. Na porta de casa o gato Simba me olha todo dia com a mesma questão: “aonde você vai?” Boa pergunta. Coloco os óculos de sol na cabeça e às vezes esqueço onde estão. Enquanto espero o elevador desembolo o fio e plugo o fone no celular. Abro a tela e clico num ícone laranja no formato de um daqueles grandes fones de ouvido. Tenho um desses, mas não dessa cor, obviamente.

Obviamente por quê?

Porque sim. Vá encher o saco de outro. - O player de música (podia ser de outra coisa) oferece algumas opções de reprodução, inclusive a aleatória que conheci recentemente. Gostei desse negócio. É como uma rádio que só toca músicas que eu escolhi e não tem propagandas, mas também não tem surpresas. Atirem no pianista!

Outro dia coloquei uma gravação recente da Sinfonia Fantástica de Berlioz, música na qual não pensava fazia tempo. Muitas vezes essa operação demora um pouco, ao sair na claridade da rua quase não enxergo mais o visor. Cumprimento vizinhos, gente voltando da “acadimia”, passeando com o cachorrinho, conde falando aos passarinhos.

Ganho a rua ouvindo a Killer Queen, aquela que guarda Moet Chandon num armário bacaninha (onde foi parar o trema nesse teclado?); ao dobrar a esquina aperto o passo, sinto um calo no pé esquerdo e tenho aquela sensação chata da distância: falta sei-lá-quanto para chegar. Logo estou submerso em pensamentos, olhos grudados no chão converso comigo sem fazer agora a menor ideia do assunto...

Depois de uns três minutos passava pela calçada do Senac e o dispositivo aleatório escolheu um noturno de Chopin com Guiomar Novaes, peça que andei batucando uns tempos atrás. De novo tenho a sensação de distância, espaço/tempo. Respiro e sinto que ao pensar existo. Alguém pichou que a TEG é foda, que diabos é a TEG? Maldita seção central, difícil fazer aquela sequência de oitavas! Cadê tempo para estudar?


O vento sopra no microfone - como será que faz para desligar essa bustrenga? (saudade dessa palavra) - depois lembro que ouvir música com aqueles pequenos dispositivos enfiados no ouvido não é a coisa mais saudável. Ao contrário de agradecer o aviso do fabricante - a música alta pode ocasionar perda de audição - fico é puto da vida. Dá vontade de ouvir no toco, mais alto até do que o volume máximo oferece...

... Reconheço que sou um pouco infantil, autoestragativo e buscador de limites. Como nessa relação com os carros, os tais “chatomóveis”. Se não é seguro correr por aí que nem um doido, por que os fabricam tão velozes e competitivos?

Agora vem o João com seus para-pa-pá... Alguém dá um berro na plateia. “Ái meu Deus!”


Sete minutos e cinquenta e pouco: Cheguei!


sábado, 14 de novembro de 2015

SUICÍDIO LITERÁRIO - TUTORIAL

Estou lendo o “Diário Selvagem” de Carlinhos Oliveira (José Carlos Oliveira 1934-1986), escritor que saiu de Vitória ainda adolescente e fez carreira como cronista do Jornal do Brasil. Já ouvira falar muito de Carlinhos, mas nunca tivera em mãos alguma obra sua. Venho lendo devagar, porque são memórias pessoais e não uma história propriamente organizada: esbórnias intermináveis, muitos problemas de saúde, episódios amorosos frustrados perpetrados por um sujeito sexualmente inseguro, nanico (1,59m) e magrelo.
Os comentários iniciais são muito centrados na vida sexual e são também, muitas vezes, surpreendentes. Como quando Carlinhos confessa, por exemplo, suas recorrentes fantasias homossexuais, Página 21:

“20 de setembro, domingo – No Degrau [1]um rapaz me tascou um beijo na boca – beijo de amante. Ainda estou deveras perturbado. Qualquer hora dessas, as circunstancias ajudando, enfrento o problema homossexual.”

Vais saber a quais circunstancias Carlinhos se referia e também não fica claro se a questão homossexual era realmente “problema” ou solução, vide página 39.

  “Espero que X. me chupe o pau daqui a pouco. Relaxa. Ela me disse que o Z. só pensa em sacanagem (não bebe, não fuma, adora uma suruba e sonha com um garotinho que o enrabe. Eu também, de vez em quando...)”.



DE VOLTA ÀS TERRAS CAPIXABAS

O diário fica mais interessante para nós “os capixabas” quando Carlinhos vem para o Espírito Santo passar alguns dias de férias (Página 93 em diante).
No dia 10 de setembro de 1978 escreve de Vila Velha, estava hospedado na residência oficial do Governador Élcio Álvares (nascido em 1932), seu amigo de folguedos juvenis. O escritor estava em plena loucura do lançamento daquela que seria sua obra mais célebre Terror e Êxtase, particularmente chamada de 1001. Carlinhos demonstra carinho e admiração pelo atual presidente da “Banestes Seguros” e sua família, o que não o impede de acalentar fantasias sexuais com relação à noiva de Elcinho. Fala também com respeito do encontro com jornalistas como Amylton de Almeida, Maura Fraga e Sérgio Egito. Demonstra, porém, pouca condescendência com outras figuras da sociedade local.
Seus comentários jogam um facho de luz sobre certa “elite intelectual capixaba” formada por professores universitários e autores ligados às instituições governamentais, mais respeitados pela posição social que ocupam do que pelas obras que publicam. Acadêmicos interessados em legitimar e institucionalizar o valor de seu próprio trabalho e de alguns autores escolhidos entre seus pares. Não haveria problema nenhum nisso se esse grupo não se comportasse como se os outros escritores não tivessem a mesma capacidade ou qualidade e, pior ainda, esse fato ser largamente aceito como “oficial”. Aliás, não me recordo sequer dessa “convenção” ser questionada por outros autores, talvez por temer um suicídio literário. A tendência é fazer como os mais inteligentes: aceitam a situação, elogiam e adulam essa “elite” para tentar obter reconhecimento de seus escritos. Porque, obviamente, só os integrantes desse grupo são convidados a participar (ou indicar autores) de eventos literários, somente seus livros são selecionados para distribuição em escolas, indicados para o vestibular e por aí vai.
Carlinhos pergunta: “Não é uma sacanagem”?
Sim, porque aquele “rebelde precoce”[2] criado em Jucutuquara dificilmente teria alcançado o reconhecimento desses intelectuais como escritor se tivesse ficado em Vitória.

LITERATURA DE RICO

Segue a reprodução do referido comentário de José Carlos Oliveira, página 101:

“14 de setembro, quinta-feira, 16h – Victor (Martins) me mandou o romance de um capixaba que admira, A Crônica de Malemort, de Reinaldo Santos Neves (Nascido em 1946, Vitória). É filho de Guilherme Santos Neves, um dos professores de português (o outro é Clóvis Rabelo) que me humilharam no Colégio Estadual – no 1º ano ou talvez no 2º - porque eu andava lendo Machado de Assis. ‘Você não tem idade para compreender Machado, rapaz’, disseram eles, expondo-me à zombaria da classe. ‘Leia José de Alencar’, sugeriram. O jovem Reinaldo porém tem garantida a circulação de sua literatura nos colégios capixabas. Isso significa dinheiro no bolso e uma certa estabilidade profissional. Pois está relatado na orelha. Elogiando o Malemort, ‘outro importante ficcionista moderno e professor universitário’, José Augusto Carvalho, prometeu ao artista: publique logo que vou adotá-lo no Colégio Estadual e na Faculdade. Assim ele começa com um público compelido a lê-lo. Não é uma sacanagem? Mas isso acontece em todo o Brasil e só espero que Reinaldo seja mesmo um escritor talentoso. (página 102) Apontamentos fúteis e nada mais, merda. Vou ao ‘Réveillon’[3] – ou ler o tal Malemort, literatura de rico, circulação de estilo oligárquico”.

Que Reinaldo Santos Neves é um escritor talentoso, disso ninguém duvida. Parece, inclusive, ter tentado se descolar ao longo do tempo do peso dessa imagem reverente que lhe impingiram seus admiradores e outros literatos aspirantes. Talvez por isso ainda não integre a vetusta Academia Espírito Santense de Letras; atitude que, por outro lado, dá margens ao raciocínio lógico de ser esse um título que em nada acrescentaria à sua posição como autor.

POUCO ANTES DE MORRER

É curioso pensar que menos de uma década depois Carlinhos voltaria ao Espírito Santo para participar de um projeto como “Escritor Residente” do qual sairia o livro “Bravos Companheiros e Fantasmas” e coube ao autor de Malemort a redação de uma “Nota Final” e a involuntária descrição dos últimos momentos daquele confrade em letras de fama nacional:

“Dez dias antes de sua morte (Carlinhos) concluiu a revisão definitiva das provas paginadas e preparou o texto das orelhas e o conto para a contracapa, que leu com emoção na última oficina literária que estava coordenando, também como parte do projeto Escritor Residente. No hospital ainda houve oportunidade, entre um cigarro proibido e outro, para aprovar o layout final da capa e contracapa, já com o desenho (sugestão sua) do pássaro enigmático. Fez por seu livro, portanto, tudo que lhe cabia fazer”.

RETOMANDO ÀS CONCLUSÕES

Ao perceber a valorização de uma obra com base numa ligação “oligárquica” (termo contundente e perspicaz, porque se remete a um: “regime político em que o poder é exercido por um pequeno grupo de pessoas, pertencentes ao mesmo partido, classe ou família”), José Carlos Oliveira conclui conformado: “isso acontece em todo Brasil”. Pois, é possível ir-se ainda mais longe: esse episódio retrata acomodações sociais triviais que sequer parecem condenáveis; como, infelizmente, muitas vezes acontece com o nepotismo ou a corrupção. Antigamente escancarado, como revela o comentário do autor, esse “jogo” com o tempo ganhou ares democráticos: formou-se um grupo com as pessoas de sempre que continuaram a realizar escolhas a partir de gostos e interesses de sua casta, privilegiando familiares e amigos, ao mesmo tempo prejudicando, desmerecendo e relegando ao esquecimento o trabalho de desafetos e outsiders: a popular panela. 

Estaríamos romanceando a realidade? Parece que sim, dado o absurdo; mas é provável que não, dado a própria realidade.

E por aqui ficamos, meditando sobre a razão de certas coisas serem como são...



No próximo texto Carlinhos vai tecer seus comentários de soda cáustica sobre o colunismo social botocudo: “Depois eu conto”...



[1] Tradicional restaurante do Leblon. Existe até hoje.
[2] Título da biografia de Carlinhos escrita por Jason Tércio.
[3] Carlinhos se comprometera a escrever um conto com esse título para a Revista Homem/Playboy.