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sábado, 14 de novembro de 2015

SUICÍDIO LITERÁRIO - TUTORIAL

Estou lendo o “Diário Selvagem” de Carlinhos Oliveira (José Carlos Oliveira 1934-1986), escritor que saiu de Vitória ainda adolescente e fez carreira como cronista do Jornal do Brasil. Já ouvira falar muito de Carlinhos, mas nunca tivera em mãos alguma obra sua. Venho lendo devagar, porque são memórias pessoais e não uma história propriamente organizada: esbórnias intermináveis, muitos problemas de saúde, episódios amorosos frustrados perpetrados por um sujeito sexualmente inseguro, nanico (1,59m) e magrelo.
Os comentários iniciais são muito centrados na vida sexual e são também, muitas vezes, surpreendentes. Como quando Carlinhos confessa, por exemplo, suas recorrentes fantasias homossexuais, Página 21:

“20 de setembro, domingo – No Degrau [1]um rapaz me tascou um beijo na boca – beijo de amante. Ainda estou deveras perturbado. Qualquer hora dessas, as circunstancias ajudando, enfrento o problema homossexual.”

Vais saber a quais circunstancias Carlinhos se referia e também não fica claro se a questão homossexual era realmente “problema” ou solução, vide página 39.

  “Espero que X. me chupe o pau daqui a pouco. Relaxa. Ela me disse que o Z. só pensa em sacanagem (não bebe, não fuma, adora uma suruba e sonha com um garotinho que o enrabe. Eu também, de vez em quando...)”.



DE VOLTA ÀS TERRAS CAPIXABAS

O diário fica mais interessante para nós “os capixabas” quando Carlinhos vem para o Espírito Santo passar alguns dias de férias (Página 93 em diante).
No dia 10 de setembro de 1978 escreve de Vila Velha, estava hospedado na residência oficial do Governador Élcio Álvares (nascido em 1932), seu amigo de folguedos juvenis. O escritor estava em plena loucura do lançamento daquela que seria sua obra mais célebre Terror e Êxtase, particularmente chamada de 1001. Carlinhos demonstra carinho e admiração pelo atual presidente da “Banestes Seguros” e sua família, o que não o impede de acalentar fantasias sexuais com relação à noiva de Elcinho. Fala também com respeito do encontro com jornalistas como Amylton de Almeida, Maura Fraga e Sérgio Egito. Demonstra, porém, pouca condescendência com outras figuras da sociedade local.
Seus comentários jogam um facho de luz sobre certa “elite intelectual capixaba” formada por professores universitários e autores ligados às instituições governamentais, mais respeitados pela posição social que ocupam do que pelas obras que publicam. Acadêmicos interessados em legitimar e institucionalizar o valor de seu próprio trabalho e de alguns autores escolhidos entre seus pares. Não haveria problema nenhum nisso se esse grupo não se comportasse como se os outros escritores não tivessem a mesma capacidade ou qualidade e, pior ainda, esse fato ser largamente aceito como “oficial”. Aliás, não me recordo sequer dessa “convenção” ser questionada por outros autores, talvez por temer um suicídio literário. A tendência é fazer como os mais inteligentes: aceitam a situação, elogiam e adulam essa “elite” para tentar obter reconhecimento de seus escritos. Porque, obviamente, só os integrantes desse grupo são convidados a participar (ou indicar autores) de eventos literários, somente seus livros são selecionados para distribuição em escolas, indicados para o vestibular e por aí vai.
Carlinhos pergunta: “Não é uma sacanagem”?
Sim, porque aquele “rebelde precoce”[2] criado em Jucutuquara dificilmente teria alcançado o reconhecimento desses intelectuais como escritor se tivesse ficado em Vitória.

LITERATURA DE RICO

Segue a reprodução do referido comentário de José Carlos Oliveira, página 101:

“14 de setembro, quinta-feira, 16h – Victor (Martins) me mandou o romance de um capixaba que admira, A Crônica de Malemort, de Reinaldo Santos Neves (Nascido em 1946, Vitória). É filho de Guilherme Santos Neves, um dos professores de português (o outro é Clóvis Rabelo) que me humilharam no Colégio Estadual – no 1º ano ou talvez no 2º - porque eu andava lendo Machado de Assis. ‘Você não tem idade para compreender Machado, rapaz’, disseram eles, expondo-me à zombaria da classe. ‘Leia José de Alencar’, sugeriram. O jovem Reinaldo porém tem garantida a circulação de sua literatura nos colégios capixabas. Isso significa dinheiro no bolso e uma certa estabilidade profissional. Pois está relatado na orelha. Elogiando o Malemort, ‘outro importante ficcionista moderno e professor universitário’, José Augusto Carvalho, prometeu ao artista: publique logo que vou adotá-lo no Colégio Estadual e na Faculdade. Assim ele começa com um público compelido a lê-lo. Não é uma sacanagem? Mas isso acontece em todo o Brasil e só espero que Reinaldo seja mesmo um escritor talentoso. (página 102) Apontamentos fúteis e nada mais, merda. Vou ao ‘Réveillon’[3] – ou ler o tal Malemort, literatura de rico, circulação de estilo oligárquico”.

Que Reinaldo Santos Neves é um escritor talentoso, disso ninguém duvida. Parece, inclusive, ter tentado se descolar ao longo do tempo do peso dessa imagem reverente que lhe impingiram seus admiradores e outros literatos aspirantes. Talvez por isso ainda não integre a vetusta Academia Espírito Santense de Letras; atitude que, por outro lado, dá margens ao raciocínio lógico de ser esse um título que em nada acrescentaria à sua posição como autor.

POUCO ANTES DE MORRER

É curioso pensar que menos de uma década depois Carlinhos voltaria ao Espírito Santo para participar de um projeto como “Escritor Residente” do qual sairia o livro “Bravos Companheiros e Fantasmas” e coube ao autor de Malemort a redação de uma “Nota Final” e a involuntária descrição dos últimos momentos daquele confrade em letras de fama nacional:

“Dez dias antes de sua morte (Carlinhos) concluiu a revisão definitiva das provas paginadas e preparou o texto das orelhas e o conto para a contracapa, que leu com emoção na última oficina literária que estava coordenando, também como parte do projeto Escritor Residente. No hospital ainda houve oportunidade, entre um cigarro proibido e outro, para aprovar o layout final da capa e contracapa, já com o desenho (sugestão sua) do pássaro enigmático. Fez por seu livro, portanto, tudo que lhe cabia fazer”.

RETOMANDO ÀS CONCLUSÕES

Ao perceber a valorização de uma obra com base numa ligação “oligárquica” (termo contundente e perspicaz, porque se remete a um: “regime político em que o poder é exercido por um pequeno grupo de pessoas, pertencentes ao mesmo partido, classe ou família”), José Carlos Oliveira conclui conformado: “isso acontece em todo Brasil”. Pois, é possível ir-se ainda mais longe: esse episódio retrata acomodações sociais triviais que sequer parecem condenáveis; como, infelizmente, muitas vezes acontece com o nepotismo ou a corrupção. Antigamente escancarado, como revela o comentário do autor, esse “jogo” com o tempo ganhou ares democráticos: formou-se um grupo com as pessoas de sempre que continuaram a realizar escolhas a partir de gostos e interesses de sua casta, privilegiando familiares e amigos, ao mesmo tempo prejudicando, desmerecendo e relegando ao esquecimento o trabalho de desafetos e outsiders: a popular panela. 

Estaríamos romanceando a realidade? Parece que sim, dado o absurdo; mas é provável que não, dado a própria realidade.

E por aqui ficamos, meditando sobre a razão de certas coisas serem como são...



No próximo texto Carlinhos vai tecer seus comentários de soda cáustica sobre o colunismo social botocudo: “Depois eu conto”...



[1] Tradicional restaurante do Leblon. Existe até hoje.
[2] Título da biografia de Carlinhos escrita por Jason Tércio.
[3] Carlinhos se comprometera a escrever um conto com esse título para a Revista Homem/Playboy.

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