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sábado, 5 de julho de 2014

MARIA NILCE: 25 ANOS DE CRIMINALIZAÇÃO!



O dia 05 de julho de 2014 marca a passagem dos 25 anos do assassinato da colunista social Maria Nilce Magalhães. No panorama público desde então ficaram marcadas as controvérsias da investigação, as suspeitas quanto à verdadeira identidade dos mandantes, mas, sobretudo, perseguiu a vítima um movimento recorrente para lhe impingir culpa. Para as pessoas do povo Maria era uma mulher corajosa, que ousava falar a verdade; porém, seus detratores ajudados pela imprensa formaram e difundiram a opinião de que a colunista do Jornal da Cidade “falava demais, procurou e mereceu o fim que teve”.

 
Salvo raras exceções, o nome Maria Nilce só é lembrado pela imprensa durante os períodos de julgamento dos envolvidos em seu assassinato. Nestas ocasiões é mencionada a faceta polêmica da colunista e o crime que a vitimou, construindo o raciocínio lógico de que uma coisa teria a ver com a outra. Não há uma reportagem, nos dois jornais diários de Vitória ou nas televisões locais, que já tenha mostrado um perfil histórico dessa empresária pioneira, ou da escritora, a mulher à frente de seu tempo e a influência que sua coluna teve durante duas décadas no cotidiano capixaba. Uma parte da cidade lembra a colunista com admiração, outra parece querer apagá-la da memória. Maria Nilce nunca foi alvo de homenagens póstumas oficiais, não há sequer um logradouro ou espaço público com seu nome em Vitória.

Só para recordar: Maria Nilce Magalhães foi a mais importante colunista social do Espírito Santo, uma mulher de rara beleza e temperamento forte. Comandava o Jornal da Cidade, junto com o esposo Djalma Juarez, um periódico de publicação diária que chegou a ser o segundo mais lido da capital. Escreveu cinco livros com uma visão naive e cômica dos personagens da política e do cotidiano da Vitória tropicalista. Foi pioneira do colunismo na televisão, na virada da década 1960 para 1970, inclusive como jurada no Programa do Chacrinha. No auge de sua bem sucedida carreira, aos 48 anos, foi assassinada por pistoleiros profissionais na rua em que morava na Praia do Canto, quando chegava à academia de ginástica às sete horas da manhã.

 
O movimento de criminalização de Maria Nilce foi engendrado por seus principais inimigos, então pessoas influentes – amplamente aceitas como “gente de bem” da High Society Capixaba - que há anos posavam de vítimas de uma mulher descontrolada que gratuita e impunemente os expunha ao ridículo. A impávida difamação que se seguiu ao crime teve várias frentes de trabalho, desde o boca a boca nos salões de beleza, departamentos públicos e botequins da cidade, até charges e reportagens em jornais locais ou mesmo nas grandes revistas nacionais. Deste último grupo é emblemática uma “matéria” publicada semanas após o crime pela revista Manchete.

O texto - de autoria do jornalista Tarlis Batista (falecido em maio de 2002) - aborda o assassinato de Maria Nilce de forma nada respeitosa. O próprio título já estabelece um tom debochado, como se tratasse de um caso a ser investigado pelo Inspetor Clouseau: 
 

Sem se dar ao trabalho de verificar a veracidade do que lhe era dito, o autor conseguiu reunir uma verdadeira coletânea das maledicências mais comuns usadas para difamar a colunista. O texto é sensacionalista e desleixado, mesmo levando-se em consideração o fato de que Tarlis Batista atuava como jornalista esportivo e não investigativo. No parágrafo de abertura, em destaque, o autor deliberadamente assume um tom de reprovação à conduta da “colega de profissão”...

“Maria Nilce encontrou uma trágica morte, por ela prevista numa de suas colunas, por falar demais, num estilo considerado pouco ortodoxo”.

... E no parágrafo final da reportagem, de forma dramática coloca a cereja no bolo:

“Com um detalhe: quase todos acham que Maria Nilce contribuiu para que a sua morte ocorresse naquelas circunstâncias”.

A confusão em torno do assassinato de Maria Nilce fez um jornalista de A Gazeta afirmar que a investigação era feita por uma "Loucademia de Policia".
No miolo do texto de três páginas Tarlis Batista vai construindo um perfil de Maria Nilce baseado nas investigações quando ainda eram realizadas pelo delegado Claudio Guerra, que logo seria afastado do caso e preso, mas também utiliza uma série de meias-verdades e até mentiras grosseiras. O trecho que segue parece retirado de algum roteiro de novela ao afirmar que a colunista seria responsável por um suicídio: 

“Assim aconteceu com o marido de uma socialite que gostava de prevaricar. Tantas foram as notas publicadas por Maria Nilce que a mulher dele cometeu suicídio: seu corpo foi encontrado com a coluna de Maria Nilce numa das mãos”.  

Depois é mencionada a calúnia que se tornaria a predileta e mais repetida, especialmente pelos inimigos da jornalista e acusados do crime: a de que Maria Nilce chantageava empresários e políticos para faturar.

“Contam na cidade que uma das armas que ela utilizava para captar anúncios era a ameaça: só deixava de divulgar este ou aquele caso de uma dama ou empresário se ele fizesse doações para manter o Jornal. Quem não aceitasse esse jogo - diz-se em Vitória – sofria as consequências”.

Nota-se que com as difusas ressalvas “contam” e “diz-se”, Tarlis Batista até tenta dotar seu texto de um caráter de isenção, dando a entender que aquela seria a opinião das pessoas. Mas que pessoas eram essas? Isso o jornalista não diz. Teria sido mais justo e ético se revelasse o autor das acusações como a do suicídio, porque eram muito graves. Supondo que não fosse possível revelar a “fonte” - mesmo porque nada daquilo seria passível de comprovação - então que não as publicasse. Graças a essa atitude deplorável os leitores da Manchete em todo o país assimilaram um cenário imaginário como verdadeiro e tão negativo que dava margens a se pensar que o covarde assassinato da colunista fora simplesmente um ato de justiça divina.

Tarlis Batista não pode hoje nos dizer quem foram as pessoas entrevistadas à época em que veio a Vitória levantar os dados para sua reportagem. Porém, Fernanda Magalhães Carlos de Souza, filha mais velha de Maria Nilce lembra bem do episódio com o jornalista porque, de tantas reportagens negativas e detratoras à vítima, a família havia combinado de não falar mais com a imprensa. O repórter da Manchete então “forçou a barra” insinuando que a família não queria o receber porque ele era negro e que já tinha ouvido falar que Maria Nilce era racista. Fernanda ainda lembra que Tarlis comentou que seu contato em Vitória era Nirlan Coelho.

O Jornalista Tarlis Batista posando com amigas na Marquês de Sapucaí
 
Hoje em dia atuando somente como psiquiatra, Nirlan Coelho Evangelista chegou a escrever uma coluna no Jornal da Cidade, na primeira metade dos anos 1970. A antiga secretária do periódico, Regina Lourenço, lembra que o rapaz teve muito apoio de Maria Nilce para custear o curso feito na faculdade particular de medicina EMESCAM. Tempos depois Nirlan passaria ao rol dos inimigos de Maria, ao se aliar ao seu principal concorrente, o colunista Hélio Dórea de A Gazeta, o qual passou a substituir “interinamente”. O também colunista Jorginho Santos, da Revista Class - que começou no jornalismo através de Maria Nilce e trabalhou com ela por oito anos - lembra que:

“Nirlan foi fazer residência no Rio e lá fez relacionamento com as pessoas. Chegou a trazer gente de fora para festas, foi responsável pelo relacionamento de Hélio Dórea no Rio com Hildegard Angel, com esse povo da alta.”


 
Na época da reportagem da Manchete, Jorginho, que fora um dos amigos mais fiéis da colunista, havia se tornado um dos principais desafetos. Sua afirmação de que Nirlan Coelho teria inserção junto à imprensa carioca confere bastante sentido para a passagem de Tarlis Batista por Vitória. Passados vinte e cinco anos o colunista da Class tem uma visão muito diferente dos fatos daquela época e concedeu uma entrevista de mais de uma hora para o projeto de um livro que está sendo escrito sobre Maria Nilce. Especialmente com relação às difamações contra a vítima o colunista diz o seguinte:

“Não existia aquela coisa ou você me dá ou eu vou falar mal. Isso é mentira. Com toda a mágoa que eu fiquei de Maria Nilce, eu sempre defendo esse ponto. Esses dias uma pessoa me falou que ela chegava no escritório dele, escrevia alguma coisa, que teve problema com a mulher e falava: ‘Olha, quanto vale esse artigo aqui? Se você não me der sai amanhã’. Eu falei, isso é coisa de quem leu “Chatô”, porque Assis Chateaubriand fazia exatamente isso. Então eu acho que estão confundindo os personagens. Eu nunca vi Maria fazer isso, não tinha isso não. Maria trabalhava muito e muitas vezes não tinha retorno, porque tudo o que fazia era pra plantar dentro do jornal. Depois de muito tempo é que ela começou a viajar e a fazer as coisas. Eu convivi oito anos lá, eu tenho certeza que ela nunca fez isso. Isso estão falando porque ela já morreu, é uma maneira ridícula de querer denegrir a imagem de uma pessoa.

Apesar de reprovar e fornecer uma visão muito negativa da vítima existe um indício muito claro de que a reportagem da Revista Manchete não fora simplesmente encomendada pelos verdadeiros mandantes do crime: baseado nas declarações de Claudio Guerra, Tarlis Batista insinua de forma bastante contundente a causa para o assassinato da colunista do Jornal da Cidade. Porém, após o afastamento do famigerado delegado, as investigações não prosseguiram mais naquela direção.

“Vamos calar de uma vez por todas aquela vaca. Disse uma conhecida dama da alta sociedade de Vitória, em diversas ocasiões antes do crime ser praticado. (...) Esta senhora teve o desprazer de ver divulgada uma nota sobre toda a mecânica de adoção de sua filha, fato que era mantido em segredo para todos, até da moça. (...) As declarações de Waldir praticamente esclareceram todas as circunstâncias que antecederam a morte de Maria Nilce. Permitiram chegar, também, à pessoa que dera início ao esquema: a socialite que tinha uma mansão na Ilha do Boi, uma das áreas mais nobres de Vitória”.

 
Vários outros jornalistas concordam com essa linha de investigação e, como fez Tarlis Batista, também já publicaram algumas vezes a história sem “dar nome aos bois”, afinal, todo mundo em Vitória sabe muito bem de quem está se falando. Rogério Medeiros, Pedro Maia e até o carioca Reinaldo Loio (em uma entrevista à revista Caros Amigos) mencionam a mesma “socialite da Ilha do Boi” como a principal mandante do crime contra Maria Nilce. Será que todos estavam errados ou o poder econômico da conhecida família conseguiu realmente garantir-lhes a mais completa impunidade?  


Vinte e cinco anos depois é patente a forma como em Vitória ainda permanece um tabu com relação à figura de Maria Nilce, enquanto em Nova York seu nome está em um memorial que homenageia jornalistas mortos pelo mundo, o quarto de século de seu assassinato sequer foi lembrado pelos colegas da imprensa capixaba. Até hoje a grande maioria das pessoas de sua cidade assumiu como verdadeiro o panorama muito cruel traçado por jornalistas como Tarlis Batista de que a vítima de alguma forma procurou e mereceu o fim que teve. Esse é um crime para o qual a maioria das pessoas sequer se atenta e, como quase todo o resto, vai permanecer impune.
 
Maria Nilce Magalhães homenageada no Newseum em Nova York


3 comentários:

Sayonara Abreu disse...

"Saudações a quem tem coragem"!

Lenira Miranda disse...

Parabéns por sua luta Juca. Estou com você. Maria Nilce, a mulher que conheci e que nada tinha a ver com essa imagem maquiavélica criada por alguns, merece justiça e reconhecimento por tudo de bom que realizou. E não foi pouco. Sabia, como poucos, ser amiga dos amigos.

Indio disse...

ETERNA MARIA NILCE COMO FAZ FALTA,UMA MULHER DE GARRA !!!