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sábado, 3 de maio de 2014

ENTRE O DEDÃO E O INDICADOR



Quarta no final da tarde, baita correria. Passo no cartório pra reconhecer firma em um documento e agora tem senha, então pego a verde. Falta umas dez pessoas ainda pra chegar minha vez, dou graças a Crom (Hehehe) que a bateria do tablet não acabou. Leio o número mais recente de O Inescrito, ou será que era o Flash Gordon? Tenho um antigo, daqueles grandões da Ebal, que ando pensando em me desfazer, mas cadê o tempo? Tô eu sentado dentro do cartório.

Lá no canto vejo um homem que me parece um velho conhecido, daqueles que há vinte anos eu chamava de amigo, com quem confidenciava questões pessoais e saía no final do expediente pra tomar umas cervejas. O cara envelheceu ao ponto de agora eu não poder mais dizer com certeza se é ele ou não. Imediatamente penso que também devo ter envelhecido aquele mesmo tanto e isso me deixa um pouco amuado... Isso e aquele papelzinho idiota da senha entre o dedão e o indicador.

Absorto em alguma espécie de cálculo, folheando documentos que serão reconhecidos, o homem não vê nada à sua volta. Penso divertido que possa provavelmente ter me visto o encarando com o canto dos olhos e agora foi tomado pela paranoia bastante improvável de ser um paquera, amigo bom é sempre meio doido. Ainda estava em dúvida se era o cara ou não quando ele, absorto nos papéis, começou a passar a mão no rosto de maneira familiar. Caio na real que foi, aliás, esse tique nervoso que me chamou a atenção e agora confirmou sua identidade.

Alguns anos nas costas faz miséria com a “informação visual” da gente: calva bastante acentuada, pancinha também, óclinho de leitura, o pacote completo de quem chegou na faixa dos cinqüenta sem passar perto da academia. Devo mesmo estar ficando velho, ando pensando com naturalidade que fazer Pilates já não é mais uma idéia tão absurda assim. Um cara colocou no twitter que se deu conta da idade quando se pegou matutando: “Esse é um bom chuveiro, quero comprar esse chuveiro”.

Amigo antigo reconhecido, agora a questão é acelerar. Tenho um monte de coisas pra fazer embora saiba que “o cemitério está cheio de gente que nunca perdeu tempo”. Se retirar o indivíduo de seu limbo introspectivo teremos duas décadas para colocar em dia, vai ser um problema danado e é já cinco da tarde. Ademais, falta só um número para a minha senha. Chamaram a dele. Passou bem na minha frente com a cabeça baixa e nem me viu. Pensei: deixa ver suas coisas, quando terminar falo com ele.

Então o painel deu um “bip” e apareceu meu número, o guichê bem a seu lado. Passei os contratos para a moça que me fez algumas perguntas. Quando fui ver o velho amigo já ia longe, atravessando a porta apressado. Lembrei de histórias engraçadas, as insanidades que nos trouxeram com dificuldade à meia idade. Lembrei também de algumas coisas desagradáveis, junto com coisas bacanas a memória sempre traz algum lixo. Lá fora o cara desapareceu, fico imaginando que tudo esteja bem em sua vida e desejo que só as lembranças boas nos acompanhem, sabe-se-lá quando vamos não nos ver novamente...  

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