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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

PREGUIÇA



 
No dia 10 de junho de 1989, em sua coluna do Jornal da Cidade, a jornalista Maria Nilce publicou a crônica intitulada “Preguiça” que hoje republico para curtir uma lufada de ar dos anos 1980. Esse resgate veio através da descoberta de um acervo do extinto periódico, hoje muito bem guardado na casa de um amigo, cuja (cujo?) identidade prefiro não revelar porque corre o risco de alguém tentar dinamitar sua casa. Basta lembrar o que aconteceu com o acervo remanescente do jornal doado pela família aos cuidados da Biblioteca Estadual e, posteriormente, descartado ou destruído em episódio criminoso até hoje obscuro.

Para ler mais sobre o assunto leia a matéria publicada em 05/09/2011 no prestigioso site Observatório da Imprensa. Aliás, modestamente falando, um dos melhores textos que escrevi:


A crônica de Maria Nilce que republico traz peculiaridades de seu estilo que denota naturalidade em transformar o privado em público. Por exemplo, fala de minha pessoa, seu filho, sem o menor trabalho de contextualizar, dizer de quem se trata. Era como se todo mundo que lesse sua coluna soubesse quem eram as pessoas que a circundavam e tivessem interesse em sua vida pessoal. Já reparei essa mesma característica em outros escritos de colunistas daqui, sobretudo, Jorginho Santos.  

Outra peculiaridade eram os diversos erros de datilografia que vazaram na revisão. O tal amigo - cioso e ciumento do acervo - explicou com acidez: “Também pudera, o povo daquele oficina onde funcionava a gráfica do jornal vivia bêbado!” Afirmação que pode até soar um pouco exagerada, mas faz parte do folclore da época e da má fama que gozava (sofria?) a qualidade da impressão do referido periódico. É bom lembrar que a oficina funcionava até as madrugadas boêmias e havia um boteco bem ao lado...

Bom e ruim é outra questão que o tempo nos faz meditar. Folheando agora o Jornal da Cidade, a tal infame “qualidade de impressão” soa bem mais, digamos assim, vintage do que apropriadamente defasada. O fato é que o periódico trazia conteúdo inédito diariamente e, especialmente, a explosiva coluna de Maria Nilce gozava de inegável apelo comercial. Apesar de não ser tão bacana como outros concorrentes, impressos em Offset, o Jornal da Cidade é até hoje perfeitamente passível de agradável leitura.

Uma característica básica do texto de Maria Nilce era a necessidade de autoafirmação, de valorização da mulher trabalhadora, que vence e que às suas expensas circula pelas mais badaladas cidades do mundo. Era uma pequena falha rastaquera que perseguia a colunista e, aliás, a maioria de seus pares e amigos vidrados em ostentações e sentimentos de inveja, talvez para não parecer o que realmente eram para o resto do mundo. De tempos em tempos Maria Nilce publicava verdadeiras “cartas de intenções” - como é o seu primeiro livro “Eu Maria Nilce” - textos em que defendia seus valores e sua forma de atuar junto à sociedade. O que segue não é bem o caso, serve mais como direito ao ócio criativo... Boa leitura e bom domingo.

            Preguiça

Na hora do almoço, Juca evocou uma música de Vinícius de Moraes que eu considero deliciosa porque fala em preguiça:

“Um velho calção de banho, um dia p’ra vadiar...”

Ah... Um dia p’ra vadiar... E durante o resto do almoço conversávamos sobre isto, sobre a maravilhosa perspectiva de ter um dia inteiro p’ra vadiar.
            E então eu disse ao Juca:
            Sou tão obsecada (sic) por trabalho que quando saio de férias e fico à toa batendo pernas pelas ruas de Paris, Roma ou Londres, me culpo o tempo inteiro de não estar trabalhando.
            – Você precisa fazer análise – retrucou Juca, que passa por uma fase cheia de mistérios.
            E depois de comer uma rabada maravilhosa daquelas de partir com o garfo, joguei-me na cama com o telefone fora do gancho, compressas de chá preto sobre os olhos e dormi como uma morta.
            Quando acordei, não acreditei no que meus olhos viram. Já passava das três da tarde. E, por incrível que pareça, lá estava eu rolando na cama cheia de preguiça. Vontade danada de ficar mais um pouquinho naquele bem-bom, mas e os compromissos? Ah, que ótimo seria ficar hoje curtindo essa preguiça aqui na cama, sem ter nada o que fazer, rolando p’ra lá e para cá agarrada ao travesseiro.
            Cadê a eletricidade habitual dona Maria Nilce? Cadê aquela energia incrível que lhe bota acordada e de pé às cinco e meia da manhã todos os dias? Que preguiça idiota é essa?
            ...Não faz mal a ninguém e não é nenhum crime se sentir preguiçosa um dia.
            Eu sou adepta de todos os pecado (sic) capitais (no original “capitalsitas”). Gula, então, nem se fala. Mas preguiça não é coisa para uma mulher como eu, movida a gasolina azul (precursora da aditivada), supositório de pimenta malagueta, que é mais elétrica do que dez mil quilowatts (no original “Kiliowatts”), como se justifica então essa preguiça que se abateu assim de repente?
            Mas tudo tem seu tempo já dizia Eclesiastes.
            Vai ver (no original “via”), ontem foi o meu tempo de preguiça.  

Um comentário:

Anônimo disse...

Era ela mesmo demais ! (MT)