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sábado, 7 de junho de 2014

PRA CABEÇA NÃO TEM CURA...



Era uma tarde de domingo, devia ser verão, mas se não fosse também não faria muita diferença. O sol vai e vem, tem gente que diz que o astro rei “marcha”, o certo é que o calor continua. Na terra dos capixabas não existe inverno, tem “frente fria”, ventinho gelado que começa a soprar lá do Penedo pra dentro da cidade. Quando essa friaca invade, a temperatura pode até cair para uns dezoito graus Celsius de manhã bem cedinho, mas esse é todo o frio que os botocudos chegam a conhecer.

Nos anos 1980 a capital do Espírito Santo era bastante incipiente no que diz respeito a opções culturais, nem mesmo grandes shoppings havia, tem um pouco de ironia nessa afirmação, mas era a pura realidade da época. Não havia grandes teatros na cidade, nem estádios, museus com exposições relevantes também não havia. Até o transporte era precário, o metrô de superfície, por exemplo, e o novo aeroporto, eram apenas vãs promessas...

 
Eusébio e Florestan nessa história eram irmãos de senso cultural apurado, ainda mais se comparado aos jovens de décadas posteriores. Desde cedo foram estimulados a conhecer o cinema e o teatro, a música de concerto, ler coleções de clássicos da literatura e a Enciclopédia Mirador Internacional. Havia vendedores dessas coisas que iam de casa em casa, como as moças da Avon, precursores do telemarketing.

Um pouco por causa da ditadura militar, um pouco por causa do isolamento histórico imposto pela coroa portuguesa, os jovens habitantes da “Ilha que era uma delícia” ouviam falar de muita coisa, mas pouco chegava ao alcance de suas mentes curiosas. Havia um delay de meses, anos, ou décadas – dependendo da censura – para as grandes produções do hemisfério norte desaguar naquelas terras e em seus mangues e aterros.

 
Naquela tarde infinita, antes do advento do Faustão, a atração na televisão era a comédia musical “Cantando na Chuva”. Quem não conhecia a célebre canção com Gene Kelly? Porém, os dois irmãos nunca haviam assistido ao filme todo e logo o acharam chato “bagarái”. Nem Eusébio, o mala que em tudo via poesia, estava aguentando. Florestan, de violão em punho, perguntava por que o cara tinha que dançar e sorrir ao mesmo tempo. E a tal da música nunca chegava...  

De repente, vindo do quarto onde o Pater Seraphicus fazia a sesta, ouviram gritos desesperados: “Socorro! Socorro! Estou morrendo! Socoorro!” Foram acudir muito assustados e encontraram o homem caído na cama, com os pés para fora. Assim que se acercaram dele o infeliz passou a gemer e ofegar, terminava as frases soprando as vogais, como os atores ruins, parecia realmente acreditar que ia bater as botas a qualquer instante. “Socorro Flô, socorro Eusébio”...

Chamou-se uma ambulância do Hospital do Coração, Pater Seraphicus era já freguês conhecido, só que o socorro demorou um pouco pra chegar (imagine, domingo, naquela época) então os irmãos ficaram tentando tranqüilizar o velho, mas com um olho na televisão do quarto. “Uma hora essa porcaria de chuva vai cair e finalmente a gente vai ver a cena de dança que imortalizou Gene Kelly”. Toca esperar...

Lá pelas tantas soou uma sirene, eram os enfermeiros que adentraram o recinto em “marcha lenta” com aquela peculiar expressão de quem realmente nasceu para trabalhar num domingo de sol, “só que não!”. Antes de remover o suspeito de enfarto, mediram a pressão de Pater Seraphicus e fizeram algumas perguntas, o homem protestou a gravidade do caso balbuciando dramático dores no peito. O jeito era rebocar ao hospital para maiores averiguações...

Como era um sujeito de peso, Eusébio e Florestan tiveram que ajudar os enfermeiros a colocar Pater Seraphicus na maca. Quando estava tudo pronto, os caras terminaram de guardar seus apetrechos e começaram a sair do quarto, discretamente soaram os primeiros acordes de Singing in the Rain. Florestan e Eusébio se entreolharam decepcionados enquanto Gene Kelly começava a dar piruetas ao redor de um poste, era uma espécie de predecessor das pole dancers.

 
Por que aquela porcaria não passou cinco minutos antes? Quando entendeu que depois de esperar tanto não poderia assistir a apresentação da música Eusébio foi acometido por uma puta crise de bobeira. Os enfermeiros olhavam incrédulos aquele palhaço estrebuchando de rir.  Era bom se aproveitassem para rebocar a família inteira para averiguação em alguma instituição mental. Afinal, os problemas de cabeça são mais comuns que os do coração.

Oh yeah! E bem mais difíceis de curar...

Um comentário:

Unknown disse...

Genial, Juca...
Perfeito.

Rico