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quarta-feira, 10 de abril de 2013

ANTIGAS MESSALINAS - PROIBIDAS E INCOFESSÁVEIS



Afonso era filho de uma família tradicional de imigrantes portugueses, donos de propriedades em áreas nobres da cidade e estabelecimentos comerciais importantes. Gostava de enfatizar um traço espanhol qualquer que havia em seu sangue, nunca entendi muito bem porque, parecia uma implicância qualquer com sua gente da terrinha, mas não tinha nada a ver com o estereotipo brasileiro de português não ser muito inteligente ou coisa que o valha.

Afonso era um cara que mascou, apesar da fortuna e de ser “bem nascido” não deu pra nada das coisas práticas da vida e, não sei se por isso, virou uma fruta às vezes azeda, às vezes amarga. Também não sei se estudara a ponto de ser formado em alguma coisa ou professar uma profissão, nem que fosse de professor. Por conta da fortuna da família nunca precisou trabalhar e muito menos o quis. Casar também não casou, aliás, sua orientação sexual, digamos assim, era muito temerária em sua juventude e maturidade, passível até de punição com cadeia.

Atravessou a vida ligeiramente bêbado - muitas vezes completamente - mas seu auge foi nos anos setenta, quando usava os cabelos castanhos um pouco compridos e grossas costeletas de Mi Buenos Aires Querida. Ora, não só pela fortuna que herdara, algumas mocinhas casadoiras o achavam atraente e passível de um flerte. Não, nunca foram e nem seriam correspondidas. Afonso viveu foi uma paixão alucinada com um rapaz bastante humilde que trabalhava em uma peixaria. E pensaria com desgosto seu pai se fosse vivo: mas esse bosta nem sequer é o proprietário do estabelecimento?

Vestia camisas de cetim estampadas, mas de cores sóbrias e grossos cordões de prata, nunca seria visto de calça jeans e tênis, quando muito um chinelo de Franciscano. Muito menos daria a doida de se vestir de Cinderela, mas no fundo esperava o príncipe encantado chegar para resgatá-lo daquela miséria toda e serem felizes para sempre.

Por saber que seus sonhos nunca se realizariam, era cínico e sarcástico para com as pretensões do alheio, parecia supor e até desejar que todo mundo fosse dar em nada exatamente como sua vida dera. Esse seu aspecto era bastante detestável, mas fora moldado à custa de muito sofrimento, sozinho desde pequeno em instituições de ensino onde foi sumária e reiteradamente surrado e seviciado. Em seu sono falava e soltava gritos sonâmbulos, não se sabe se de terror ou de prazer. Talvez os dois.

Gostava de ler e de se deixar ver enfiado e compenetrado em livros; obviamente, ele mesmo nunca escreveu nada, nem mesmo memórias, porque acreditava realmente e por toda a vida que fosse o que fizesse jamais iria resolver coisa alguma. Para ele o mundo não tinha jeito. Era condenado a dar o desprezo porque entendia que aí residia sua verdadeira herança, no abandono e na desilusão. Aliás, sofreu muito quando seu peixeiro o trocou por um funcionário público federal, um rapaz mais jovem que acabaria um dia assassinado de maneira tenebrosa em um daqueles encontros amorosos “proibidos e inconfessáveis”.

Não era um cara muito falante, era reservado, mas depois de umas biritas - e quando se sentia seguro - gostava de contar histórias picantes de seu universo homossexual. Falava especialmente de um amigo que, muito diferente dele, resolvera contrair o matrimônio e até gerara filhos “cada um mais lindo do que o outro”, comentava com espanto e talvez despeito. O amigo casou, mas, disse ele, nunca se vira no mundo pessoa mais sexualmente degenerada. Passou quase toda a festa das bodas dentro do banheiro dos homens servindo aos convivas, sim, e ainda rebatia com uísque. Era, como lembrava divertido em suas recordações, “uma Messalina desvairada”.

Um dia Afonso morreu - incógnito como atravessara toda a vida - sem deixar herdeiros para seus vencimentos que devem ter ido parar nas mãos daqueles que mais desprezava e que aqui não fazem nenhuma diferença. O encontrei por acaso pouco tempo antes disso, suponho, porque também nem sei direito quando se deu a libertação de seu longo cativeiro. Eu estava olhando um disco de Chabrier numa loja do Centro da Praia e mostrei para Afonso que deu a entender que já conhecia, talvez por não admitir alguma pequenez em seu saber enciclopédico, ainda mais perante um guri como eu.

Conversamos depois sobre os velhos tempos e que muitas senhoras falavam de uma pessoa em comum com saudades. De seu jeito amargo que aparentemente se acentuara ao ver o ocaso à menor distância, Afonso me respondeu quase às lágrimas:

- Elas mentem Juca, as mulheres mentem...

O tempo voava, então voltei para o escritório onde trabalhava e peguei o carro; indo para casa passei pelo mesmo lugar onde nos encontráramos que ficava bem perto e o vi, indo embora também. Era o início da noite num dia de semana qualquer. Afonso tentava a travessar a rua, agora mais acentuadamente bêbado que um gambá. Soltava palavrões trôpegos e discutia com os carros velozes na penumbra da noite, parecia um maluco enquanto ajeitava a camisa de seda que devia ter se enganchado por acidente na bicicleta de um passante qualquer.     

Depois Afonso sumiu, eu sei lá, deve ter virado fel...

2 comentários:

Anônimo disse...

Meu caro Juca:
Quantas Messalinas Desvairadas já cruzaram meus muitos outonos, quantos Afonsos...
Naqueles tempos, sem tanta ousadia como nessa nossa Era de Arco-Iris e Paradas Monumentais.
O seu Afonso ibero-lusitano também não me é desconhecido. Que mundo pequeno!
Machadinho

PS. Como velho Professor aposentado e pai de peças ímpares como Piuí e Picolé, MAGOEI ! no segundo parágrafo.

Juca disse...

Veja só você, velho pirata dos caribes, eu sou professor também e quis só fazer um trocadilho. Magoa não...