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domingo, 31 de agosto de 2014

A PERSISTÊNCIA RACISTA



Neste último fim de semana passou por Vitória o espetáculo “7 Conto a Comédia” com o ator Luis Miranda; muito mais do que inteligentes e divertidos, os quadros criados pelo artista visam “quebrar os Rolex do preconceito” e acordar o público para a crueldade e o cinismo nas relações entre aqueles que têm e não têm dinheiro. Importante e necessária reflexão porque muitas pessoas são tratadas como cidadãos de terceira à nossa volta, muitas vezes sem nos darmos conta ou que tenhamos fôlego para reagir. Recentemente presenciei uma dessas:

Num evento um professor da rede pública virou para uma menina escolhida para representar os alunos, muito probrezinha e tímida, e disparou afetado: “Ah, mas você não veio com essa sandália, né?” Imaginemos que aquela sandalinha estropiada, marca trivial e profunda de uma triste realidade, não fosse o calçado que a menina mais desejasse usar. Precisava ter isso esfregado na cara? A menina se encolheu que nem uma “dormideira” e o rapaz distraído parou de rir quando encontrou meu olhar entre espantado e indignado. Apesar de ser um pacifista convicto eu estava prestes a tirar o meu sapato esculhambado e sentar em sua cabeça.

 
Numa inversão genial, Miranda conseguiu demonstrar em um texto cômico o quanto o preconceito racial não tem nada de engraçado, embora rir dele seja caminho para cairmos na real de como isso ainda é comum. Durante o quadro de Chapeuzinho Vermelho, o ator interpreta uma menina negra revoltada com a realidade: lembra que os brinquedos, os heróis, as fábulas, sempre retratam pessoas brancas. Disse que na televisão as atrizes e personagens têm nomes que remetem à clareza como Branca, Clara, Cristal, Sol, etc. Reclamou que em sua escola só a colocam pra fazer o papel do Saci, que se no filme Procurando o Nemo se o peixinho fosse preto o nome seria Procurando o Demo e que a Rapunzel negra ao invés de jogar as tranças teria jogado um cipó. E finalmente menciona a única novela da Globo que contou com uma protagonista negra e o nome era justamente “Da Cor do Pecado”.

A imagem da Rapunzel negra jogando cipó ao invés de tranças infelizmente me lembrou de um antigo caso de repercussão nacional envolvendo uma moça chamada Ana Flávia, então com dezenove anos, filha do Governador do Espírito Santo, Albuíno Azeredo. Pra refrescar a memória segue um trecho da matéria que foi publicada na revista Veja - Cujo (cujo?) título “A Cinderela Negra” também calhou de fazer um link com o mundo das fábulas – mostrando o episódio como exemplo gritante de racismo:

“A estudante Ana Flávia Peçanha de Azeredo, negra, 19 anos, filha do governador do Espírito Santo, segurou a porta do elevador social de um edifício em Vitória enquanto se despedia de uma amiga. Em outro andar, alguém começou a esmurrar a porta do elevador. Ana Flávia decidiu então soltar a porta e, depois de conversar mais alguns instantes, chamou o outro elevador, o de serviço. Ao entrar nele, encontrou a empresária Teresina Stange, loira, olhos verdes, 40 anos, e o filho dela, Rodrigo, de 18 anos. [...] Segundo Ana Flávia contaria mais tarde, Teresina foi logo perguntando quem estava prendendo o elevador. ‘Ninguém’, respondeu a estudante. ‘Só demorei um pouquinho.’ A empresária não gostou da resposta e começou a gritar. ‘Você tem de aprender que quem manda no prédio são os moradores, preto e pobre aqui não tem vez’, avisou. ‘A senhora me respeite’ retrucou a filha do governador. Teresina gritou novamente: ‘Cale a boca. Você não passa de uma empregadinha.’ Ao chegar ao saguão, o rapaz também entrou na briga. ‘Se você falar mais alguma coisa, meto a mão na sua cara’, berrou. ‘Eu perguntei se eles me conheciam e insisti que me respeitassem’, conta Ana Flávia. Rodrigo ameaçou outra vez: ‘Cale a boca, cale a boca. Se você continuar falando meto a mão no meio de suas pernas’. Teresina segurou o braço da moça e Rodrigo deu-lhe um soco no lado esquerdo do rosto. [...] A polícia abriu um inquérito a pedido do governador. Se forem condenados [Teresina e Rodrigo], os dois podem pegar de um a cinco anos de cadeia” (Veja, 7 de julho de 1993).  Por Peter Fry: R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O (2 8): 1 2 2 - 1 3 5, D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 9 5 / 9 6.

 
A conservadora sociedade capixaba reagiu com a indignação esperada e também com doses cavalares de hipocrisia, de repente ninguém na esnobe High Society tratava com desprezo seus empregados ou manifestava “nojinho” contra “pretos e pobres”. Teresina Stange, que até então era uma agente de viagens de sucesso, pioneira do turismo no Espírito Santo, rapidamente virou persona non grata. Alguns amigos até defenderam a empresária dizendo que naquele dia ela atravessava problemas de saúde que a desestabilizaram emocionalmente. Não serviu para desculpar o que aconteceu; segundo comentários da época a empresária e seu filho foram embora definitivamente para os EUA, provavelmente, lá pros lados do Missouri ou Alabama.

Os Protestos em Ferguson acordaram o mundo para o racismo
 
Pena que todo o monumental bafafá em torno do assunto não bastou para extinguir o preconceito colonial capixaba, o nosso velado “apartheid”.

Em minha opinião aquele episódio não fora simplesmente um mero caso de racismo. Eu já encontrara “Dona” Teresina em duas ocasiões festivas e pude constatar que aquela pessoa – assim como muita gente daquele meio – tinha o hábito de julgar o outro muito dura e sumariamente por aparências. A primeira ocasião foi no sorteio de um “amigo X” e a outra no dia da troca dos presentes. Ao anunciar que eu era seu sorteado a mulher disse que não me conhecia e que a única coisa que sabia a meu respeito é que todas as vezes que me via eu estava bebendo. Ou seja: por me encontrar em duas festas tomando uma bebida qualquer com os amigos, na primeira oportunidade que teve insinuou para todos que eu era, praticamente, um alcoólatra.

Não estou dizendo que era o caso de Teresina Stange, mas conheço muitas pessoas da dita “High” e muitas vezes nem tanto que adotam um peculiar veneno social, como o fez aquele professor, inferiorizando o outro em busca de diversão e auto-afirmação. Atitude lamentável que hoje é politicamente reprovável, mas continua admirada, reforçada e reproduzida, especialmente em programas de futilidade da televisão. A notícia de pequenas grosserias – e especialmente as grandes - divertidamente circulam entre a autodenominada elite e acabam adotadas pelos periféricos que a servem e eventualmente frequentam aquele universo “de charme e glamour” onde, curiosamente, o respeito ao próximo, a educação e a cortesia não são muito praticados.

Uma prova de que parte da high capixaba dos anos 1990 assimilaria o susto com naturalidade foi que, muito rapidamente, a agressão a Ana Flávia foi transformada em piada. Obviamente, no sentido contrário do que fez Luis Miranda em sua peça. Bem longe ainda estavam os anos politicamente corretos; infelizmente o preconceito racial ainda existe, mas é cada vez mais denunciado e discutido. Vide nesse instante a polêmica gerada no caso de racismo contra o goleiro do Santos num jogo contra o Grêmio em Porto Alegre.

Chamando o Aranha de Macaco para todo o Brasil
No escritório em que eu trabalhava um amigo, branco, de olhos verdes, veio me contar divertido que tinham conseguido resolver o problema de elevadores no prédio da confusão com a filha do Albuíno.

- É mesmo? – Perguntei - Fizeram o quê?

- Agora só os moradores e as visitas podem utilizar o elevador social e o de serviço.

- E o resto do povo que trabalha no prédio, vai subir como?

- Então, pro resto eles penduraram um cipó do lado de fora...   

Um comentário:

Afobório disse...

Oi, bom dia! Como vai? Nossa, que bacana este post. Concordo contigo em gênero, número e grau. Embora as pessoas neguem o racismo, ele existe sim. Acho que atitudes racistas são abomináveis e este tipo de atitude não pode persistir em nossa sociedade, é preciso dar um bata nisto. Eu sou um novo autor e faço oficinas literárias nas escolhas municipais e estaduais da minha cidade, e o foco destas atividades é justamente o combate ao racismo e toda e qualquer discriminação. Parabéns pelo post, sorte, luz e literatura, sempre!