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sábado, 27 de março de 2010

DEDO DE MOÇA ATACA OUTRA VEZ!


Dedo de Moça era um sujeito... Tá bom, essa não é uma história sobre o Dedo de Moça histórico – se é que realmente existe algum - mas vamos fazer de conta que era. Afinal de contas, um bom cronista popularesco como eu, preza a sua fama de mau e não revela suas Fontanas de Trefzger. Anfãn, como diria a vaidosa Princesa Jasmyne...


Dedo de Moça era um sujeito intenso, espalhado e verborrágico. Sei lá, até o termo escalafobético poderia bem ser usado para o descrever. Era aquele tipo de pessoa que os poetas descrevem como “uma força incontrolável da natureza”. Sua presença transbordava os rios e às vezes transcendia incontrolável o limite da razão... E tome metáforas.


Quando o vi pela primeira vez me pareceu um homem comum, mas desses bem triviais mesmo, como um daqueles motoristas de ônibus de antigamente, que levantavam a barra das calças para se aliviar do calor, expondo o esdrúxulo de suas canelas e as meias furadas. Era forte, no sentido de ostentar orgulhoso uma grande, sólida e redonda barriga. Transpirento e sempre com o umbigo à mostra, como se até este quisesse participar dos acalorados debates em que o pançudo se metia.


Dedo de Moça era tudo, tudinho, menos um “cara comum”.


Nelson Rodrigues dizia enfático: “Todo canalha é magro!” Dedo de Moça era o contrário: boa praça e espaçoso em todos os sentidos, principalmente no qual o são os homens – e nisso incluem-se algumas mulheres – soterradores, imparáveis como as encostas em avalanche durante e após um temporal. Sua presença se impunha como uma banda de música estridente, não tinha como deixar de o notar. Que trivial que nada: ele era sobrenatural!


Gostava de falar em tom de discurso e pontuava suas frases com sonoras gargalhadas. Quando isso acontecia víamos em sua bocarra alegremente escancarada os dentes bem separados uns dos outros, o que para ele não parecia ser o menor fruto de constrangimento, exatamente o inverso das pessoas que sorriem colocando pudicas a mão sobre a boca. Era feliz como os vândalos quando invadiram Roma.


Aprofundando essa questão relativa à porta de sua voz: a saliva espirrava de sua boca para todos os lados, o homem era como um chafariz grandiloquente, um buldogue faminto, ou, como já falei: uma força da natureza.

Várias vezes em conversas com ele tive vontade e até a intenção de abrir um guarda-chuvas pra me proteger, especialmente na hora da risada. Aposto com vocês que se eu o tivesse feito isso não o constrangeria e até causaria naquele gigante um piripaque de tanto rir. Sua baba era tão profusa que, após reuniões de trabalho víamos espantados um grande círculo de saliva delimitando o lugar à frente do qual ele estivera sentado falando compulsivamente.


A pior situação era nos momentos das grandes reuniões públicas do sindicato, quando o microfone era passado de mão em mão entre os inflamados debatedores. Em vários sentidos Dedo de Moça era o terror daqueles eventos. Abandonava o artefato falatório encharcado e os que não atentavam para o fato logo provavam na boca, involuntariamente e com asco, de seu abjeto veneno. Sua úmida retórica virou piada entre os colegas e eu, que não sou mão-boba nem nada, passei a levar um lenço aos tais encontros públicos.


Certa vez, após um de seus inflamados discursos - aquele tom de madeira rachando – o pançudo me passou o microfone gotejando e foi abraçar efusivamente o presidente da mesa, um sujeito austero e comedido, muito pouco afeito a brincadeiras, ainda mais em público. Retirei calmamente o lenço do bolso e estanquei o produto da verborragia apimentada do companheiro do jeito que deu, lamentava não ter álcool para uma assepsia mais conveniente ou até mesmo atear fogo.


Enganchado nas toras do comandado o presidente viu meu ato e minha expressão de nojo e, para minha surpresa, ao invés de censurar meu desrespeito, fazendo sua tradicional expressão austera, caiu foi na risada. Vi a hora em que até ele mesmo ia fazer piada com o assunto ali na frente de todo mundo, talvez na vã tentativa de enquadrar o companheiro babão.


Mas Dedo de Moça não se emendava e seguiu devorando o universo com sua imensa bocarra insaciável. Tempos depois me afastei daquele grupo animado e nunca mais vi esse meu amigo extraordinário. No final do ano passado eu caminhava pelo centro da cidade e ouvi um trovão chamando pelo meu nome como uma intervenção divina: era Dedo de Moça esparramado dentro de um táxi. Felizmente eu não estava ao alcance de sua saliva e nem tampouco deu tempo dele me deslocar uma costela com um de seus famigerados abraços.


Hoje não sinto tanta falta daquela época e de um certo status que aquele trabalho me emprestava, o que guardo com alegria e afeto são as recordações de meus “encontros com esses homens notáveis” (Saravá Gurdjeff!), esses seres de um outro mundo que são tão raros e diferentes desses do lado de cá.


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