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domingo, 5 de setembro de 2010

CENAS EXCLUÍDAS DO LIVRO DO PÓ: ZECA É O REI DA NOITE!

Antes de ler, coloque pra tocar a música "Hide In Your Shell" do album "Paris" da banda Supertramp. E bon voyage...


Brumosas noites do passado, histórias que o tempo conta, distantes e difusas como lembranças de sonhos pela manhã. Coisa velha, velharia, Supertramp, banda do que se convencionou chamar Rock Progressivo; um movimento dos anos setenta que tinha a pretensão de fundir a música dita “clássica” com roquenrou numa linguagem grandiloqüente de longos solos virtuosísticos.


Bon soir Paris! – Essa frase abria o concerto mais famoso que fizeram aqueles branquelos com cara de cervejeiros do Supertramp, reunia o que tinham feito de melhor até então, mesmo porque dali pra frente não haveriam de fazer mais grandes coisas. Paris era um álbum duplo - dois discos de vinil - simplesmente delicioso de se ouvir.


Zeca era um jovem aprendiz de feiticeiro, escamoteava a timidez e a insegurança atrás de um verniz de bad boy, com o tempo a fama de mau iria grudar em suas costas e seria difícil remover seus resquícios indesejáveis. Naquela noite foi parar numa festa sem poder precisar bem como, isso era comum de acontecer. Talvez o Turco o tenha levado, aquele narigudo irresponsável... Não sei.


- Não tem que ter convite pra entrar não Turco?


- Relaxa rapá, que eu dou um jeitinho de te colocar pra dentro...


A festinha estava acontecendo no salão de festas do prédio que o cara morava, bem perto, aliás, de onde ficava a danceteria New Wave do Véio Gagá. Zeca achou-se satisfeito quando entraram sem nenhum problema para um salão com várias garotas bonitas, destas botou logo mau olhado numa morena de parar o trânsito.


- Turco, me belisca preu ver se eu tô mesmo acordado. Que gata é aquela meu irmão? - Estavam no barzinho atrás de uma cerveja. O rapaz se voltou meio aborrecido, não conseguia a atenção de ninguém nem “molhar o bico” como queria.


- Qual gata?


- Aquela morena ali! – O narigudo ficou ainda mais aborrecido.


- Porra Zeca num vem com estória não que essa aí é minha irmã cara.


- Sua irmã? Me apresenta então rapá!


Turco fechou a cara e passou a fugir da situação que nem o diabo da cruz, pra não arrumar encrenca o maluco ficou quieto, mas não desgrudava os olhos da caça. Tentando chamar atenção para si inventou de distribuir cortesias da New Wave, só não tinha convites na mão, coisa fácil de resolver já que a danceteria ficava quase ao lado. Enquanto isso a molecada resolveu fazer a eleição do rei e da rainha da noite, por mais boboca que essa idéia possa hoje parecer. Zeca muito animado perguntou pro amigo emburrado qual o nome de sua irmã, votou nela e saiu que nem um doido atrás de por em prática o plano de rebocar parte daquela festa caretinha pro seu terreiro.


Um tremendo burburinho percorria o salão quando o menino voltou, tinham desligado o som e estavam para anunciar o casal de vencedores. Os convidados fizeram um grande círculo e no meio duas mocinhas aparentemente excitadas por serem o centro das atenções empunhavam uns papéis. Após um pequeno e deslumbrado discurso introdutório partiram para o anúncio do casal escolhido, começando pela Rainha da Noite:


- A vencedora é Mariana! – Um fuzuê tomou conta dos convivas e a bela morena, entre sorrisos constrangidos e acenos de rainha, destacou-se da multidão.


- Num falei Turco! Num falei! Tua irmã é a maior gata rapá, eu sabia que era ela quem ia ganhar!



- A moça caminhou até o meio do salão onde recebeu a faixa e uma tiara dourada de papelão e celofane. Após pagar o mico fez menção de escapulir, mas foi impedida pela produção, afinal sua majestade precisava ainda saber o nome do futuro Rei com quem dividiria as honras daquela noite.


- E o vencedor é... - A garota olhava confusa os papéis com o resultado da votação, discutia com as outras, até que falou e disse: - Gente o vencedor é um cara que a gente não sabe o nome, ele é um rapaz moreno que está vestindo uma camisa quadriculada! - Zeca estava tão distraído que ficou olhando ao redor até se dar conta que todos olhavam para sua própria cara de pastel! O vencedor não era outro senão ele mesmo, como tinha entrado de penetra e ninguém o conhecia foi votado pela roupa que vestia. Após se dar conta da vitória abriu um sorriso de pop star e caminhou confiado até o centro das atenções.


As meninas o receberam com salamaleques juvenis colocando uma pequena coroa em sua cabeça. Nosso amigo, por sua vez, não desgrudava os olhos de sua Rainha Mariana, finalmente tão pertinho de sua presença, mas a melhor notícia ainda estava por vir:


- E agora o casal vencedor vai dançar uma música lenta juntos! - Naquela época costumavam chamar as canções românticas de “música lenta”. E a música começou lenta mesmo, era Hide In Your Shell do Supertramp, o rapaz a reconheceu desde os primeiros compassos, a gravação ao vivo em Paris. Zeca amava muito aquela canção.


As luzes se apagaram e os dois se abraçaram, o cantor do Supertramp ditava conselhos em falsete para os que sofrem as agruras da solidão e da desilusão com o amor. O som foi crescendo, os corpos se estreitaram com intimidade como se tivessem assumido uma espécie de vontade própria, como peças feitas para se encaixar em um daqueles quebra cabeças que a natureza humana arma para encher o mundo de gente. O resto do salão estava às escuras, ninguém mais dançava, aquele momento era só deles.


Zeca afastou um pouco o rosto para falar alguma coisa, talvez pra dizer que aquela era sua canção predileta, encontrou os olhos da moça numa surda expectativa, seus lábios entreabertos, sua respiração em suspensão - acaba que não disse nada. O Supertramp atacava com tudo: teclados, baixo, bateria, guitarra e vocais de apoio. O passo seguinte foi automático, logical, o Rei e a Rainha diluíram-se num longo e apaixonado beijo daqueles que só parecem de verdade no cinema, a galera veio abaixo - menos o Turco emburrado - parecia gol em final de campeonato...


Como diria o Grilo Falante citando Vinícius de Moraes “a vida é a arte do encontro, apesar de tantos desencontros”, nem adianta tentar entender o moral dessa história. Esse bem que poderia ter sido o grande amor da vida de Zeca, mas acaba que não foi: depois dessa noite o rapaz nunca mais voltaria a se encontrar com Mariana. Talvez em alguma ocasião muito fugaz, casada com um antigo bonitão dos tempos do ginásio, grávida já do segundo neném. O que são essas memórias hoje? Histórias que o tempo conta, distantes e difusas como lembranças de sonhos pela manhã...

2 comentários:

Anônimo disse...

Juca, leva a mal não mermão, mas tenho a impressão que vc não devia ter deletado exatamente estas cenas do teu livro. Por incrível que possa te parecer, foram as que mais gostei. Abs, Leandro Haddad.

Juca disse...

Tem um aviso que eu deveria ter colocado (aliás, vou colocar) no início deste texto. Antes de começar a o ler coloque para tocar a música Hide in Your Shell do album Supertramp Paris pra tocar. Sem dúvida estas cenas estarão presentes na segunda edição do Livro do Pó...