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terça-feira, 21 de setembro de 2010

TODO MUNDO DIZ QUE GOSTA DE MÚSICA

Estou para “dar um pulo” em Belo Horizonte, cidade que visitei em algumas ocasiões sui generis da vida: campeonato de paraquedismo no cucuruto de um bairro chamado Carlos Prates, show do Kiss no Mineirão (1983), aliás, a única vez que entrei em um grande estádio de futebol. Acabei lembrando de um amigo daquelas terras, um pouco também por causa de meu texto passado. Como estarei viajando nos próximos dias, vou adiantar a crônica de domingo, se bem que estou numa fase escrivinhatória daquelas, não duvidem se mais vier antes disso:


Frederico foi meu professor de harmonia, sim, o tão detestado estudo da “gramática” musical. Tocar um instrumento pressupõe diversão, em outras línguas o termo é equivalente a brincar ou jogar, a maioria dos estudantes detesta encarar a fundo a teoria do som. O cara do texto passado me disse sem o menor escrúpulo que fora pesquisar na internet sobre livros de harmonia, talvez tenha pensado que eu também não fizesse idéia de que catzo fosse. E eu que uma vez comecei a traduzir o tratado de Rameau? Parei por falta de tempo e porque o Bohumil Med disse que tinha que ser direto do original em francês senão pagava royalties, que nem a Petrobrás...


Meu professor de harmonia, o Frederico, era um cara totalmente diferente do restante da humanidade que eu conhecia: tinha uns trinta anos, só que postura de cento e cinquenta e atitude de nove para certas coisas do mundo. Deu pra entender? Tem muita gente assim. Usava óculos e uma sonora barba, fazia o estilo intelectual do século dezenove. Até na hora de rir ele era professoral, parecia um Papai Noel: hou, hou, hou! Às vezes eu falava sobre música popular e me admirava porque ele afirmava não conhecer absolutamente nada.


- Mestre, você nunca foi a uma discoteca? Não teve adolescência não? - Cofiando a barba e sorrindo como um velho sábio retrucava com uma pontinha de orgulho:


- Minha adolescência eu passei debruçado sobre as sinfonias de Beethoven. - Gostava de contar da vez, quando tinha dez anos, em que conheceu o maestro Guerra Peixe e sapecou pra cima deste: - Beethoven foi o maior sinfonista de todos os tempos! - Depois explicava que esse compositor hoje tão esquecido fora educado e lhe falara das sinfonias de Mahler, Brahms, Bruckner, entre outros. Beethoven era imenso, mas não era o único. Nos anos futuros a paixão de meu mestre na música seria Edgard Varése, não por acaso, o mais inescrutável entre os incompreensíveis.


Frederico morria de rir com os termos que eu usava em meus escritos, ditos escrotos, uma vez teimou comigo que o termo “patropi” não existia e queria saber se era um neologismo que eu tinha inventado. Falava sério... Ora, a palavra não constava mesmo do Aurélio e o mestre não se sentia nem um pouco obrigado a conhecer Jorge Ben e muito menos Wilson Simonal.


Uma vez era sábado a tarde e estávamos estudando na sala, se não me engano, a partitura de Ein Heldenleben de Strauss e rolava lá no morro Jesus de Nazaré uma puta batucada, funk, pagode, algo assim bem “popular”. Sem conseguir me concentrar, lá pelas tantas falei que “aquela música” estava enchendo o saco e imediatamente fui repreendido pelo professor:


- Não, não, não diga isso... - Pensei que ele fosse começar um dos seus discursos sobre a importância da diversidade cultural e a liberdade das manifestações populares que influenciaram a criação dos grandes gênios e a definição da estética no raio que os parta. Daí perguntei:


- Não o quê mestre?


- Não chama isso de música não maluco!

2 comentários:

Carla Cristina Teixeira Santos disse...

kkkkkkkk
"Não chama isso de música não, maluco!" é ótimo!
Esse seu professor me fez lembrar grandes professores meus. :-)
O post anterior me recordou um dito de Antero de Quental a Castilho:

“Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Exa. passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas coisas que saem dele, confesso, não me merecem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V.Exa. precisa menos cinqüenta anos de idade, ou então mais cinqüenta de reflexão. É por estes motivos todos que lamento do fundo da alma não me poder confessar, como desejava, de V.Exa. nem admirador nem respeitador”.

Antônio Feliciano de Castilho (de quem tenho a tradução de Fausto, de Goethe) era apegado à estética romântica, Quental, à realista. Ambos tiveram um acirrado embate, pelo que sei.

Juca Magalhães disse...

Muito bom Carlinha, a "gravidade" nas crianças é também uma coisa que me desagrada, embora eu não ache a futilidade uma criancice, para mim é defeito de fabricação.

Bjs e valeu pelo coment...