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domingo, 27 de julho de 2014

O TEMPO E A MÚSICA DO MEU TEMPO...



Vitorinha dos anos oitenta, ilha maluca de gente metida a muderna. Fim da ditadura, morte de Tancredo e a besta do Sarney que virou presidente. Bom, nem sei se o Sarney era mesmo uma besta, mas na época eu achava. De besta aquele cara não deve ter é nada. Besta somos nós, especialmente bestas éramos naquele tempo.

Eu respirava os ares de uma cidade que não existe mais, porque o tempo passou. As ruas e esquinas, os meninos e as meninas, uma incerta vida mansa. Eu queria ser tudo, achava que podia tudo, tentava engolir o mundo e acordava de ressaca, muitas vezes sem saber como tinha chegado, onde estava, ou quem era a garota do meu lado.

Sobrevivemos, aliás, muitas vezes tenho a impressão que somos sobreviventes. Porque pessoas vão ficando pelo caminho e aí descobrimos que a festa estava acabando, aliás, naquela época Renato Russo disse que “o pra sempre, sempre acaba” e eu não concordava, achava o cantor da Legião um cara meio besta também.

Eu queria alcançar o tempo, ultrapassar minha sombra, amarrar o burro, mas meu próprio querer atrapalhava. Saía para vagar de noite atrás de uma determinada paquera específica e acabava passando o rodo noutra que tinha, aliás, um provérbio muito citado era: “se não tem tu, vai tu mesmo”.

A cabeça era povoada de ilusões, grandes e pequenas, abismos e confusões; o bom era “ducaralho”, o ruim uma “putamerda”. Detestava competição, achava que algo tinha que ser meu por merecimento ou destino e que se pudesse ser de outro não merecia o trabalho. Talvez fosse medo de perder, de falhar, daí perdia até sem disputar.

Com o tempo entendi umas coisas, outras acho que jamais deve rolar: as pessoas que se vão em vida, a crença religiosa em coisas materiais, o mundo real que, aliás, não sei mais se existe de verdade. Contatei que a mentira tem pernas curtas e que muitas vezes nos ajuda, o que atrapalha é persistir no erro.

Falando naquilo, um dia aprendi que só a persistência e a disciplina nos levam a algum lugar sólido e nos liberta da imaginação do que podia ser, mas... Depois de muito matutar saquei que desenvolver habilidade leva tempo, descobri também que ninguém nasceu sabendo nada e que, por outro lado, certas coisas não se aprendem.

Eu não podia andava e tentei voar... Eu sei, foi John Lennon quem disse isso. Talvez estivesse fazendo um balanço de expectativas como o que faço agora. Seguindo o pensamento musical, hoje de manhã estava no banho e lembrando os discos que mais marcaram minha infância e pré-adolescência, uma lista “top dez” com quase vinte:

1.      Sweet “Sweet Fanny Adams” (1974)

Acho que foi o disco que mais ouvi na infância, era rock glam ou glitter, meio farofa, mas as músicas e os músicos eram muito bons. Os caras passam a impressão de que podiam fazer muito mais do que estavam fazendo e que, o mais legal de tudo, aquilo era apenas uma baita diversão.

 
2.      Rita Lee “Fruto Proibido” (1975)

Tenho saudade dos ares que a gente respirava ao ouvir esse disco, aquela bateria datada, pra mim é o melhor dos anos setenta.
 


3.      Bob Dylan “Desire” (1976)

Sempre adorei aquela pegada folk da canção Hurricane, é engraçado pensar que a gente não sabia da grande sacanagem que o Bob denunciava na letra.

 
4.      Milton Nascimento e Lô Borges “Clube da Esquina” (1972)

Esse é pra ouvir da janela lateral do quarto de dormir... Acho que é o disco brasileiro que mais me influenciou.


5.      Deep Purple “Stormbringer” (1974)

Como no caso do Black Sabath e do Led Zeppelin, não é o disco mais famoso da banda, mas é o que tinha lá em casa, fui abduzido pela osmose musical dos caras.

 
6.      Led Zeppelin “Physical Graffiti” (1975)

Eu viajava naquela capa com as janelinhas, lembro do disco ficando velho, da capa rasgando...

 
7.      Genesis “Selling England By The Pound” (1973)

Tinha uma propaganda na televisão com uma galera andando numa cachoeira e entrava o piano com Peter Gabriel cantando citizens of hope & glory time goes by - it's 'the time of your life... Por essas e por outras o piano é meu instrumento favorito.

 
8.      The Rolling Stones “30 Greatest Hits” (1976)

É uma panorâmica muito boa dos Stones e eu ouvi bagarái, a música que mais ficou na minha cabeça desse disco, sei-lá-por-que, é Dandelion, que me remetia a uma parada meio misteriosa. Not Fade Away eu toco até hoje, inclusive em rodas de violão, depois fui descobrir que era um cover do Buddy Holly.

 
9.      The Beatles “Album Azul 1967-1970” (1973)

Duas coisas marcaram profundamente minha infância e adolescência e eu as absorvi à exaustão: a música dos Beatles e as revistas do Asterix. Chegou uma hora que enjoei: parei de ouvir, de tocar e de ler. Agora, chegando perto dos cinquentinha, me deu a doida de reler tudo do Asterix e estou me esbaldando de novo com o humor deles.
 


10.  Black Sabbath “Technical Ecstasy” (1976)

É o disco do Sabbath que eu gosto, os outros, alguns muito mais famosos, não me fizeram tanto a cabeça.


11.  Billy Joel “The Stranger” (1977)

Uma coisa que eu adoro na música dos anos setenta é a forma de compor grandes canções, com mudanças de andamento, de clima, como é o caso de Scenes From an Italian Restaurant e a maioria das canções desse outro disco que vem abaixo.


 12.  Supertramp “Crime Of The Century” (1974)

Agora a gente tá falando de piano. Esses dias eu peguei um show do Supertramp pra ver e estava reparando que nunca, mas nunca mesmo, eles fazem um slide, o tal do “glissando”. Saca? Aquela compulsão irresistível de escorregar os dedos pelas teclas? Rick Davies não cai nessa, o cara é o melhor pianista do Rock’n’Roll...

 
13.  The Who “Tommy” (1975)

Pode parecer incrível, mas nessa época o Fantástico já existia, só que era com Cid Moreira e aquela voz de além túmbalo e passou um videoclipe do Elton John tocando Pinball Wizzard. Pirei geral e mandei logo um daqueles “pai compra esse disco pra mim!?” Acho, aliás, que foi o primeiro disco que ganhei...

 
14.  Primeira Trilha Sonora “O Sítio do Pica Pau Amarelo” (1977)

As canções são tão boas que, curioso, nunca tive coragem de tocar. Também, quem é que consegue reproduzir aquele violão do João Bosco na música do Visconde? Adoro muito aquela música que fala assim “Pêxe! Dêxeu te ver pêxe!” Suspeito hoje que fosse pura viagem de maconha, bem no estilo dos anos setenta...

 
15.  Trilha sonora do filme “Embalos de Sábado a Noite” (1977)

Quando ameacei entrar na adolescência explodiu a onda Disco, então rolava Donna Summer, Village People, Santa Esmeralda (credo!) e canções como “Love is in the air” e “I Will Survive”. Lembro de uma música meio pesada chamada Like a Locomotion que tocava muito nas noitadas do Clube Centenário que era perto de nossa casa. Mas de todos o filme Saturday Night Fever e sua trilha sonora mais-vendida-de-todos-os-tempos foi o que morou de aluguel nos nossos ouvidos por mais tempo.

 
16.  Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo (1972)

Chico Buarque e Milton Nascimento eram os “artistas” preferidos de mamãe. Pelo menos são os dois que mais me lembro dela cantando e ouvindo. Papai gostava muito dos Demônios da Garoa, mas não lembro qual disco tinha lá em casa. O velho comprava fita cassete também, tinha uma dos Demônios que a gente ouvia indo para a praia em Manguinhos. Aquela música da “laranja madura na beira da estrada” eu achava que os caras cantavam “capixaba Zé contém maribondo no pé”.

 
17.  Simon And Garfunkel’s Greatest Hits (1972)

No ano passado caiu no meu colo a partitura de uma transcrição fiel, portanto difícil, do arranjo para piano de Bridge Over Troubled Water. Toquei, mal e porcamente, admito, numa apresentação do Algazarra. O Concerto no Central Park é imperdível também, um tempo atrás descobri que foi filmado e pirei o cabeção...

 
Lembro de muitos outros discos que não conseguiria identificar exatamente, mas que não me marcaram tanto assim, tipo o “Frampton Comes Alive” ou os inevitáveis do “Rei” Roberto Carlos. Tinha um álbum duplo de sucessos do início do Rock’n’Roll com Rock Around The Clock do Bill Halley e outras do Elvis, The Everly Brothers, The Platters, Little Richards, Chuck Berry e mais um monte.

 
É como se eu pudesse ver agora alguns discos da coleção “Os Clássicos Mais Populares do Mundo”, com uns gatinhos na capa, que papai ouvia super compenetrado olhando para o nada. Ele gostava muito também de música “romântica”, especialmente francesa (Piaf e Charles Aznavour) e italiana (Ornella Vanoni). Rolava muito aquela música “Love Is All” o cara tinha uma voz de tenor rasgadássa que todo mundo achava foda. Mas foda mesmo, camarada, era ter que escutar. E Zé fini!

quarta-feira, 9 de julho de 2014

E AGORA JOSÉ?


E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
(...)
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora? 

Drummond 

Eu não entendo nada de futebol, nunca me interessei muito e, aliás, sempre achei um tédio aquele leva e traz interminável da bola e que muitas vezes acaba em 0 x 0. Outro dia até comentei com minha esposa que gostaria de torcer por algum time, o envolvimento emocional das pessoas parece tão divertido, acho incrível como tem gente que realmente se importa com aquilo.

Como brasileiro nato e típico até certo ponto, fui pego a rodo pela animação em torno da participação do Brasil-sil-sil em uma Copa do Mundo, ainda mais com a parada rolando aqui mesmo em terras tropico-americanas. Só que foi muita bola fora desde o início, uma espécie de filme catástrofe dos bons, daqueles que vão num crescendo até rolar a grande tragédia, a morte anunciada.

Pra começar tem a questão do Fuleco. Lembro de ter me perguntado: É sério? O nome é esse mesmo? Quem foi o imbecil que teve essa idéia? Por que não colocaram logo Fudêncio? Depois me embrulharam os “estrombios” a arrogância daqueles franceses suíços da FIFA, as denúncias de corrupção, os estádios que nunca ficavam prontos, as obras prometidas que não saíram do papel. Eu muito besta fiquei animadão para andar de trem bala, ia ter uma estação bem atrás da casa de minha irmã...


Vieram então os protestos, os questionamentos, de repente parece que ninguém queria mais a Copa do Mundo no Brasil. Precisamos de escolas e de hospitais, precisamos de vergonha na cara, futebol já temos desde criancinha. Mas lá veio a Copa do jeito que a FIFA queria, com uma festa de abertura sem graça de dar dó e o jogo cujo (cujo?) episódio mais marcante e comentado foi a galera mandando a Presidente do país tomar naquele lugar.


Para inaugurar em grande estilo a tragédia que nos esperava, o primeiro gol feito pelo Brasil foi contra. Um pânico sem panicats - fora a buzanfa do Hulk - invadiu a cara de Marcelo. O pior é que aquela expressão de cagasso acompanharia o time e culminaria no linchamento em Beagá. Depois veio o chororô. Não lembro mais em qual jogo, se no segundo ou terceiro, que o menino Neymar Junior abriu a cara a chorar após o hino nacional. Pensei: tem alguma coisa errada nessa parada aí, num tem não?

Ao longo de toda a Copa fiz churrasquinho, tomei minha cervejinha e vi os jogos em casa com a “costela de Adão” que há tanto me aguenta e que, como eu, tá pouco se lixando para a vértebra do Neymar. A cada um dos passos mencionados por Felipão me perseguia sensação de que tinha alguma coisa fora da ordem, mas, como disse no início, não entendo patavinas de futebol e os outros times estavam passando seus sufocos também, vai ver no final dá tudo certo.

Quando o Brasil empatou com o México ainda na primeira fase, começou a agonia, meu amigo Cello postou no Facebook o sentimento da nação: “0 x 0 pro México”. Prova que ele é melhor piadista do que torcedor, porque sei que liga tanto para futebol quanto eu. Depois veio o empate com a porcaria do Chile e eu detesto decisão com pênaltis! Um conhecido me contou que ficou tão nervoso que baixou hospital, na volta foi parado numa blitz e perdeu a carteira por razões óbvias, etílicas e patrióticas.


Ontem, contrariando todas as teorias da conspiração de malucos como o Cajurú que afirmavam categoricamente que a Copa estava comprada, o Brasil finalmente mostrou que os derrotistas estavam certos. Poucos dias antes aconteceu na mesma cidade de Belo Horizonte uma tragédia muito maior, o desabamento de um viaduto inacabado que deveria estar pronto para a competição, ceifando a vida de duas pessoas que nada tinham a ver com as bandalheiras de um Estado corrupto, irresponsável que está pouco se lixando para o povo sofrido que David Luiz pranteou.

Curioso notar que quase todo mundo se debulhou em lágrimas histéricas pela contusão do nosso principal atacante, mas, fora as famílias, quem chorou pelas vítimas daquela tragédia em Beagá? Ninguém deu a menor bola, aliás, brazuca é outro nome idiota para a tradicional pelota. Lembro, nem sei como porque tinha seis anos de idade, do escândalo que foi no final de 1971 o desabamento do viaduto da Paulo de Frontin no Rio. Agora não houve revolta, o erro de um juiz causa muito mais indignação do que um representante público corrupto e suas obras que desabam.


E agora José? Alguém anotou a placa? O poema do Drummond me lembrou que o apresentador José Luiz Datena prometeu apresentar seu programinha só de cuecas se o Brasil perdesse a Copa. Depois do acachapante sete a zero que levamos é a gota que falta, porque, como dizia Maria Nilce antigamente: desgraça pouca é bobagem...

sábado, 5 de julho de 2014

MARIA NILCE: 25 ANOS DE CRIMINALIZAÇÃO!



O dia 05 de julho de 2014 marca a passagem dos 25 anos do assassinato da colunista social Maria Nilce Magalhães. No panorama público desde então ficaram marcadas as controvérsias da investigação, as suspeitas quanto à verdadeira identidade dos mandantes, mas, sobretudo, perseguiu a vítima um movimento recorrente para lhe impingir culpa. Para as pessoas do povo Maria era uma mulher corajosa, que ousava falar a verdade; porém, seus detratores ajudados pela imprensa formaram e difundiram a opinião de que a colunista do Jornal da Cidade “falava demais, procurou e mereceu o fim que teve”.

 
Salvo raras exceções, o nome Maria Nilce só é lembrado pela imprensa durante os períodos de julgamento dos envolvidos em seu assassinato. Nestas ocasiões é mencionada a faceta polêmica da colunista e o crime que a vitimou, construindo o raciocínio lógico de que uma coisa teria a ver com a outra. Não há uma reportagem, nos dois jornais diários de Vitória ou nas televisões locais, que já tenha mostrado um perfil histórico dessa empresária pioneira, ou da escritora, a mulher à frente de seu tempo e a influência que sua coluna teve durante duas décadas no cotidiano capixaba. Uma parte da cidade lembra a colunista com admiração, outra parece querer apagá-la da memória. Maria Nilce nunca foi alvo de homenagens póstumas oficiais, não há sequer um logradouro ou espaço público com seu nome em Vitória.

Só para recordar: Maria Nilce Magalhães foi a mais importante colunista social do Espírito Santo, uma mulher de rara beleza e temperamento forte. Comandava o Jornal da Cidade, junto com o esposo Djalma Juarez, um periódico de publicação diária que chegou a ser o segundo mais lido da capital. Escreveu cinco livros com uma visão naive e cômica dos personagens da política e do cotidiano da Vitória tropicalista. Foi pioneira do colunismo na televisão, na virada da década 1960 para 1970, inclusive como jurada no Programa do Chacrinha. No auge de sua bem sucedida carreira, aos 48 anos, foi assassinada por pistoleiros profissionais na rua em que morava na Praia do Canto, quando chegava à academia de ginástica às sete horas da manhã.

 
O movimento de criminalização de Maria Nilce foi engendrado por seus principais inimigos, então pessoas influentes – amplamente aceitas como “gente de bem” da High Society Capixaba - que há anos posavam de vítimas de uma mulher descontrolada que gratuita e impunemente os expunha ao ridículo. A impávida difamação que se seguiu ao crime teve várias frentes de trabalho, desde o boca a boca nos salões de beleza, departamentos públicos e botequins da cidade, até charges e reportagens em jornais locais ou mesmo nas grandes revistas nacionais. Deste último grupo é emblemática uma “matéria” publicada semanas após o crime pela revista Manchete.

O texto - de autoria do jornalista Tarlis Batista (falecido em maio de 2002) - aborda o assassinato de Maria Nilce de forma nada respeitosa. O próprio título já estabelece um tom debochado, como se tratasse de um caso a ser investigado pelo Inspetor Clouseau: 
 

Sem se dar ao trabalho de verificar a veracidade do que lhe era dito, o autor conseguiu reunir uma verdadeira coletânea das maledicências mais comuns usadas para difamar a colunista. O texto é sensacionalista e desleixado, mesmo levando-se em consideração o fato de que Tarlis Batista atuava como jornalista esportivo e não investigativo. No parágrafo de abertura, em destaque, o autor deliberadamente assume um tom de reprovação à conduta da “colega de profissão”...

“Maria Nilce encontrou uma trágica morte, por ela prevista numa de suas colunas, por falar demais, num estilo considerado pouco ortodoxo”.

... E no parágrafo final da reportagem, de forma dramática coloca a cereja no bolo:

“Com um detalhe: quase todos acham que Maria Nilce contribuiu para que a sua morte ocorresse naquelas circunstâncias”.

A confusão em torno do assassinato de Maria Nilce fez um jornalista de A Gazeta afirmar que a investigação era feita por uma "Loucademia de Policia".
No miolo do texto de três páginas Tarlis Batista vai construindo um perfil de Maria Nilce baseado nas investigações quando ainda eram realizadas pelo delegado Claudio Guerra, que logo seria afastado do caso e preso, mas também utiliza uma série de meias-verdades e até mentiras grosseiras. O trecho que segue parece retirado de algum roteiro de novela ao afirmar que a colunista seria responsável por um suicídio: 

“Assim aconteceu com o marido de uma socialite que gostava de prevaricar. Tantas foram as notas publicadas por Maria Nilce que a mulher dele cometeu suicídio: seu corpo foi encontrado com a coluna de Maria Nilce numa das mãos”.  

Depois é mencionada a calúnia que se tornaria a predileta e mais repetida, especialmente pelos inimigos da jornalista e acusados do crime: a de que Maria Nilce chantageava empresários e políticos para faturar.

“Contam na cidade que uma das armas que ela utilizava para captar anúncios era a ameaça: só deixava de divulgar este ou aquele caso de uma dama ou empresário se ele fizesse doações para manter o Jornal. Quem não aceitasse esse jogo - diz-se em Vitória – sofria as consequências”.

Nota-se que com as difusas ressalvas “contam” e “diz-se”, Tarlis Batista até tenta dotar seu texto de um caráter de isenção, dando a entender que aquela seria a opinião das pessoas. Mas que pessoas eram essas? Isso o jornalista não diz. Teria sido mais justo e ético se revelasse o autor das acusações como a do suicídio, porque eram muito graves. Supondo que não fosse possível revelar a “fonte” - mesmo porque nada daquilo seria passível de comprovação - então que não as publicasse. Graças a essa atitude deplorável os leitores da Manchete em todo o país assimilaram um cenário imaginário como verdadeiro e tão negativo que dava margens a se pensar que o covarde assassinato da colunista fora simplesmente um ato de justiça divina.

Tarlis Batista não pode hoje nos dizer quem foram as pessoas entrevistadas à época em que veio a Vitória levantar os dados para sua reportagem. Porém, Fernanda Magalhães Carlos de Souza, filha mais velha de Maria Nilce lembra bem do episódio com o jornalista porque, de tantas reportagens negativas e detratoras à vítima, a família havia combinado de não falar mais com a imprensa. O repórter da Manchete então “forçou a barra” insinuando que a família não queria o receber porque ele era negro e que já tinha ouvido falar que Maria Nilce era racista. Fernanda ainda lembra que Tarlis comentou que seu contato em Vitória era Nirlan Coelho.

O Jornalista Tarlis Batista posando com amigas na Marquês de Sapucaí
 
Hoje em dia atuando somente como psiquiatra, Nirlan Coelho Evangelista chegou a escrever uma coluna no Jornal da Cidade, na primeira metade dos anos 1970. A antiga secretária do periódico, Regina Lourenço, lembra que o rapaz teve muito apoio de Maria Nilce para custear o curso feito na faculdade particular de medicina EMESCAM. Tempos depois Nirlan passaria ao rol dos inimigos de Maria, ao se aliar ao seu principal concorrente, o colunista Hélio Dórea de A Gazeta, o qual passou a substituir “interinamente”. O também colunista Jorginho Santos, da Revista Class - que começou no jornalismo através de Maria Nilce e trabalhou com ela por oito anos - lembra que:

“Nirlan foi fazer residência no Rio e lá fez relacionamento com as pessoas. Chegou a trazer gente de fora para festas, foi responsável pelo relacionamento de Hélio Dórea no Rio com Hildegard Angel, com esse povo da alta.”


 
Na época da reportagem da Manchete, Jorginho, que fora um dos amigos mais fiéis da colunista, havia se tornado um dos principais desafetos. Sua afirmação de que Nirlan Coelho teria inserção junto à imprensa carioca confere bastante sentido para a passagem de Tarlis Batista por Vitória. Passados vinte e cinco anos o colunista da Class tem uma visão muito diferente dos fatos daquela época e concedeu uma entrevista de mais de uma hora para o projeto de um livro que está sendo escrito sobre Maria Nilce. Especialmente com relação às difamações contra a vítima o colunista diz o seguinte:

“Não existia aquela coisa ou você me dá ou eu vou falar mal. Isso é mentira. Com toda a mágoa que eu fiquei de Maria Nilce, eu sempre defendo esse ponto. Esses dias uma pessoa me falou que ela chegava no escritório dele, escrevia alguma coisa, que teve problema com a mulher e falava: ‘Olha, quanto vale esse artigo aqui? Se você não me der sai amanhã’. Eu falei, isso é coisa de quem leu “Chatô”, porque Assis Chateaubriand fazia exatamente isso. Então eu acho que estão confundindo os personagens. Eu nunca vi Maria fazer isso, não tinha isso não. Maria trabalhava muito e muitas vezes não tinha retorno, porque tudo o que fazia era pra plantar dentro do jornal. Depois de muito tempo é que ela começou a viajar e a fazer as coisas. Eu convivi oito anos lá, eu tenho certeza que ela nunca fez isso. Isso estão falando porque ela já morreu, é uma maneira ridícula de querer denegrir a imagem de uma pessoa.

Apesar de reprovar e fornecer uma visão muito negativa da vítima existe um indício muito claro de que a reportagem da Revista Manchete não fora simplesmente encomendada pelos verdadeiros mandantes do crime: baseado nas declarações de Claudio Guerra, Tarlis Batista insinua de forma bastante contundente a causa para o assassinato da colunista do Jornal da Cidade. Porém, após o afastamento do famigerado delegado, as investigações não prosseguiram mais naquela direção.

“Vamos calar de uma vez por todas aquela vaca. Disse uma conhecida dama da alta sociedade de Vitória, em diversas ocasiões antes do crime ser praticado. (...) Esta senhora teve o desprazer de ver divulgada uma nota sobre toda a mecânica de adoção de sua filha, fato que era mantido em segredo para todos, até da moça. (...) As declarações de Waldir praticamente esclareceram todas as circunstâncias que antecederam a morte de Maria Nilce. Permitiram chegar, também, à pessoa que dera início ao esquema: a socialite que tinha uma mansão na Ilha do Boi, uma das áreas mais nobres de Vitória”.

 
Vários outros jornalistas concordam com essa linha de investigação e, como fez Tarlis Batista, também já publicaram algumas vezes a história sem “dar nome aos bois”, afinal, todo mundo em Vitória sabe muito bem de quem está se falando. Rogério Medeiros, Pedro Maia e até o carioca Reinaldo Loio (em uma entrevista à revista Caros Amigos) mencionam a mesma “socialite da Ilha do Boi” como a principal mandante do crime contra Maria Nilce. Será que todos estavam errados ou o poder econômico da conhecida família conseguiu realmente garantir-lhes a mais completa impunidade?  


Vinte e cinco anos depois é patente a forma como em Vitória ainda permanece um tabu com relação à figura de Maria Nilce, enquanto em Nova York seu nome está em um memorial que homenageia jornalistas mortos pelo mundo, o quarto de século de seu assassinato sequer foi lembrado pelos colegas da imprensa capixaba. Até hoje a grande maioria das pessoas de sua cidade assumiu como verdadeiro o panorama muito cruel traçado por jornalistas como Tarlis Batista de que a vítima de alguma forma procurou e mereceu o fim que teve. Esse é um crime para o qual a maioria das pessoas sequer se atenta e, como quase todo o resto, vai permanecer impune.
 
Maria Nilce Magalhães homenageada no Newseum em Nova York