Era um começo de noite
de uma sexta-feira quando fui bater a campainha do apartamento de uma república
de bichas da cidade para dar uns conselhos a um certo jornalistazinho que
estava perturbando a minha vida dentro do Jornal da Cidade com ideias
agitadoras...
A bicha dona da casa
me recebeu sorridente, vestindo uma sunga preta e uma blusa vermelha
amarradinha na cintura com os botões abertos deixando à mostra os fatais seios.
Na sala, sentado, ouvindo Maria Bethânia cantar, estava o agitador e outra
bicha que enrolava os cabelos com as pontas dos dedos.
Aos meus conselhos o
agitador reagiu de maneira violenta e inesperada, atirando-me com os pés de
encontro a uma estante cheia de cristais. Ao bater de encontro à estante peguei
uma garrafa de cristal bico de jaca cheia de uísque e arremessei de encontro ao
meu agressor. Possuída por uma cólera incontrolável, resolvi atirar em cima
dele todos outros cristais que haviam na estante. A bicha dona da casa gritava:
- Meus cristais não!
Pelo amor de Deus, meus cristais não! – Enquanto isso a outra bicha, a que
enrolava os cabelos, se atracou comigo.
- Pelo amor de Deus
Maria Nilce, você vai matar ele! - O agitador caído aos pés da poltrona, Maria
Bethânia se esgoelando na eletrola cantando “Último Desejo” e a cachorrinha
Naná lambendo o uísque esparramado no chão.
A porta da cozinha se
abriu e apareceu outra bicha - a cozinheira “Florinda Fogão” - que veio
“desapartar” a briga com uma panela e eu descalça, tirei o cinto da “pantalona”
e disse:
- Em bicha eu bato de
cinto!
Outra porta se abriu,
mais uma bicha que vinha saindo do banheiro, apavorada com a gritaria, quando
viu o rebu deixou a toalha cair e ficou nua em pelo. A loucura era tamanha que Frederico
Fellini faria naquele momento o grande filme de sua vida.
Depois de tudo
passado, só havia bicha caída pelo chão, de chilique, e a cozinheira trazendo
água com açúcar para todo mundo (inclusive eu) que era bebida com violento
tremor nas mãos.
E a cachorrinha Naná,
cansada de lamber uísque, caiu de bêbada num canto da sala e dormiu o sono mais
glorioso de sua vida.
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Noite de Lançamento do livro Crônica de Uma Ilha Muito Doida, Maria Nilce no meio dos rapazes que não deixavam a menor dúvida, mais flores e baianas e pais de santo... |
Algumas observações:
Texto originalmente
publicado no livro “Crônica de Uma Ilha Muito Doida”, lançado por Maria Nilce Magalhães
na Boate Mario’s no dia 22 de setembro de 1977. As famosas calças pantalonas
“boca de sino” dos anos setenta acabariam eventualmente voltando à moda,
comprovando as teorias do eterno retorno da diferença. O cristal “bico de jaca”
é considerado hoje uma raridade kitsch e tem ainda seu mercado. A linda canção
“Último Desejo” de Noel Rosa foi gravada em tom intimista por Maria Bethânia (Ah!
Ela não se esgoela não...) em um disco só com canções do poeta da Vila, lançado
em 1966.
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Autografando a Crônica de Uma Ilha Muito Doida Para Augusto Ruschi |
A briga rememorada em
crônica pela jornalista que seria assassinada em circunstâncias nebulosas mais
de dez anos depois – sem que, obviamente, uma coisa tenha nada a ver com outra
- mostra a tentativa de alcançar o nível de descrição satírica comum à época em
que as pessoas ainda se divertiam lendo crônicas em jornal, especialmente os textos
de Sergio Porto, Fernando Sabino, Luis Fernando Veríssimo e até Chico Anízio
que lançou algumas coletâneas do gênero.
Ao pesquisar livros
sobre história do jornalismo no Espírito Santo, a impressão que se tem é que
muita gente preferiu esquecer (ou resolveu apagar da memória) que muitas das
histórias contadas em tom de deboche por Maria Nilce em seus livros e em sua
coluna diária, além de serem boas, eram muito lidas e populares. A descrição
encontrada da obra produzida pela jornalista em seus mais de vinte anos de
carreira é geralmente depreciativa e reprovadora, descartando a existência de qualquer
traço de qualidade o que é estranho e carece de melhores considerações.
O fato pode ter a ver
com os tempos bicudos que vieram após o assassinado da colunista, afinal, falar
bem dela implicaria em se indispor com um poderoso grupo que tomou de assalto o
Estado do Espírito Santo e que até os tempos atuais ainda goza de bastante
prestígio e influência. Por outro lado, antes disso, uma das classes mais
atacadas, ridicularizadas e reiteradamente desafiadas por Maria Nilce foi
justamente a de seus colegas colunistas e jornalistas capixabas, porque ela os
considerava uns “desfibrados” subservientes às pretensões de endinheirados de
passado nebuloso.
A crítica feita por
Maria Nilce ao tom do jornalismo capixaba não foi um fato isolado e mesmo hoje sites
como o do Século Diário repetem acusações semelhantes. Porém alguns jornalistas
considerados importantes na imprensa capixaba realmente não concordavam com o
tom ácido e iconoclasta de Maria Nilce, considerando seu trabalho vulgar e
antiético. Colocando, porém, em uma balança a atuação da colunista e a resposta
covarde do grupo que arquitetou seu assassinato, de maneira também antiética a maioria dos tais “grandes
jornalistas” preferiram se omitir inteiramente.
Difícil é determinar qual atitude foi pior...
Difícil é determinar qual atitude foi pior...