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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

LE TOMBEAU DE MON PÈRE


Dedicado à memória de meu querido pai, seu Djalma...

Há trinta anos eu completava dezesseis e pedi de presente ao meu pai um jantar no meu restaurante favorito. Lembro pouca coisa daquela noite, portanto as fantasias se tornam perigos constantes. Vi isso acontecer várias vezes, inclusive, ou especialmente, com esse mesmo cara que me ajudou a aparecer no mundo, ele sim era escritor e - como a maioria - se deixava levar pela imaginação do que gostaria de ter acontecido mais do que pelo que realmente houvera de acontecer.

Geralmente escolhia para escritório o ponto mais distante da entrada e escondido da casa, gostava de acalentar a ilusão de que poderia escrever sem ninguém pra incomodar. Tinha sempre um olhar de cima para baixo à máquina de escrever, Remington se não me engano, e várias velas e incensos de cheiro forte acesos bem a seu lado. Era assim todos os dias, sua sala tinha um forte cheiro encroado como o das casas de Umbanda. Imagino a estranheza que isso causava aos visitantes desavisados...

O papai tinha o desejo dos magos e os olhos em um mundo que era só seu, não porque não o quisesse compartilhar: é que só ele tinha acesso, como seus pensamentos e os segredos. Ocultismo e religião eram alguns de seus assuntos prediletos, assim como a Revolução Francesa – sua grande paixão: fantasiava e, portanto, afirmava ter vivido por lá em outra encarnação - e a Segunda Guerra Mundial – o acontecimento político mais importante de sua infância e adolescência.

Em uma de suas visitas a Paris, me contou ter driblado mamãe, que se embrenhara deslumbrada em lojas e boutiques, e fora a um encontro secreto com ninguém menos do que Philippe Encausse, filho do mestre esotérico Papus. Disse que na casa desse mago moderno havia paredes que se moviam, que segredos importantes lhe foram confiados e até obras comissionadas. Depois disso realmente lançou dois livros que, pelo menos até agora, não lhe renderam fama mundial nos círculos dos mistérios.

Uma vez eu estava fuçando o escritório do Jornal, onde sempre encontrava coisas interessantes, e achei algumas folhas de papel timbrado da revista L’Initiation, talvez a mais importante publicação esotérica do mundo. Quando fiz a descoberta soltei um baita “Uau!”, mas o braço direito de papai me tirou das nuvens de imediato. - “Ô Super-Juca, foi seu pai mesmo quem mandou imprimir isso aí lá na gráfica do jornal.” - Achei a história no mínimo curiosa e, com os papéis na mão, fui lá perturbar o velho.

- Ô pai? Por que é que tem esses papeis do L’Initiation aqui? – Lentamente desviando o rosto da máquina de escrever, que era sua maneira sutil de dizer “você está me incomodando”, falou sem dar muita importância, como fora aquela apenas mais uma prova de suas importantes ligações com o alto mundo dos mistérios:

- Eles é que mandaram para mim lá de Paris, pediram para publicar sei-lá-o-quê. – Daí eu o questionei já com aquele sorrisinho impertinente no canto dos lábios:

- Mas o Barata acabou de me contar que foi você quem mandou imprimir isso aqui mesmo na gráfica do jornal. – Dessa vez seus olhos se desviaram da máquina num acesso de brabeza comigo, o que era bastante raro, pensei até que ele fosse se levantar, então, da porta eu estava e dela não passei:

- Eu não gosto que duvidem de minha palavra! – Bom, gostar ninguém gosta, mas também pra quê dava de inventar essas histórias?! Por conta desse costume de se imaginar poderoso na clausura e no exílio escrivinhatório que se auto-impunha, hoje me pergunto sobre o que realmente era verdade ou ficção no discurso de meu pai.

Enquanto tecia essas memórias me veio novamente o cheiro do incenso da sala de meu velho, mas não encroado: sutil, como uma névoa a me enredar. De alguma maneira, acho que o velho conseguiu fazer uma das suas magias e veio aqui me visitar.

Ontem, permanentemente privados de contato no plano físico, celebrei a lembrança dos meus num dos lugares onde estivemos juntos e felizes há exatamente trinta anos atrás. É incrível que o Restaurante Lai ainda exista até hoje no mesmo lugar, com as mesmas mesas e cadeiras, o mesmo atendimento do proprietário agora ficando velhinho... Obviamente pedi o mesmo prato da ocasião em que comemorei os meus dezesseis anos: Frango Xadrez com Chopsuey - sei lá se é assim que escreve.

O mergulho no passado não me trouxe saudades da época em que tinha espinhas na cara, serviu para me fazer brecar a sensação de que o tempo está passando. Porque no Lai tudo continua como era antes e de quantos restaurantes de nossa cidade podemos dizer a mesma coisa? O saudosismo é uma forma de ficarmos encantados com essa ligação que nos deslumbrava no passado e de fazer brilhar uma antiga estrela que julgávamos perdida para sempre, mas que ainda está dentro de nós: basta procurar... 

P.S. O "Tombeau" é uma forma musical usado por compositores franceses para homenagear seus ídolos e estilos do passado, transcrevendo para o presente uma representação do valor histórico de sua cultura. Não deixa de ser, especialmente, uma forma de demonstrar o seu amor...