Polêmica é
um substantivo feminino, mas está longe de ser exclusividade do universo das mulheres
como muitos marmanjos gostam de acreditar. A cidade de Vitória conheceu uma jornalista
que viveu cercada de polêmicas, “barracos” que não eram a principal
característica de seu trabalho, mas foram importantes porque fomentaram a lenda
da mulher guerreira e geravam um interesse enorme por tudo que aquele furacão fazia
na sociedade dos capixabas. Essa mulher se chamava Maria Nilce Magalhães e
Maria Nilce era a minha mãe.
A maior
parte das pessoas vive entediada e encalacrada, presas a empregos, casamentos e
eterna insatisfação. Por isso precisam de tragédia como entretenimento, ficam muito
excitadas ao saber que de repente alguém “deu a doida”, xingou o padre, largou
o marido, roubou a empresa ou saltou da terceira ponte. A mente dessas pessoas é
pequena, não porque querem, mas porque é assim que são. Apesar disso, ou por
causa disso mesmo, uma parcela desse conjunto resolveu ser grande e outras, reconhecidas
como “elite” ou “alta sociedade”, não
viram com bons olhos a ascensão de nanicos, porque ser grande toma espaço e não
se pode dividir o que é muito, pois sempre o consideram muito pouco.
No tempo de
Maria Nilce (1941-1989) quando se apontava os “grandes” de Vitória estava se
falando exclusivamente de homens, as mulheres eram educadas nas prendas do lar,
preparadas para obedecer ao marido, cuidar da casa e dos filhos. Nos anos 1970 Maria
Nilce foi uma daquelas que diversas vezes “deu a doida”, bateu de frente com um
governador da ditadura e colocou no chinelo muitos “homens da imprensa”. Em
dado momento atingiu o status de celebridade e como estas foi perseguida e difamada,
mas devolvia os insultos e ridicularizava os desafetos em sua coluna. Sua
presença incomodava, não é exagero afirmar que algo da polêmica que a cercava vinha
do preconceito com sua condição de mulher.
A colunista
do Jornal da Cidade pode não ter sido a primeira, nem a maior, mas de sua geração
foi quem melhor conseguiu captar a imagem de “self made woman” e se transformou no símbolo da mulher capixaba bem
sucedida. Além de colunista social de apelo junto ao público, era também uma empresária
competitiva e inteligente, sabia vender e valorizar seu produto, uma de suas
frases preferidas era: “quem trabalha não conhece fracasso”. Não foi à toa que
escolheu o dia internacional da mulher para congregar as empresárias “da terra”
em um evento que celebrava a independência de seu gênero.
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A empresária do setor automotivo e cafeeiro Zuca Coser, falecida em 2009, com a colunista Maria Nilce |
No final da
década de 1980, Maria Nilce consolidara posição no jornalismo e sua
popularidade seguia em escala ascendente. Planejava construir uma sede moderna para
o Jornal da Cidade, andava badalada na sociedade carioca, viajava pelo mundo e acirrava
as críticas contra uma parcela perigosa da elite capixaba. O almoço que a
jornalista promoveu em comemoração ao dia internacional da mulher no ano de sua
morte reuniu quatrocentas mulheres, donas de grandes empresas, profissionais
liberais e até representantes da política nacional como as deputadas federais
Sandra Cavalcanti e Rita Camata.
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Sandra Cavalcanti, deputada federal
carioca discursa durante as
comemorações do Dia Internacional da Mulher. |
No dia 14 de
março de 1989, Maria Nilce publicou em sua coluna um texto relatando o clima
pesado que cercou o “Almoço da Mulher” naquele ano e classificou as ameaças de
seus desafetos como “terrorismo”. Era um prenúncio do que aconteceria poucos
meses depois: o assassinato covarde que pôs fim a uma disputa velada pelo
direito de uma jornalista se expressar contra a necessidade de calar essa
pessoa. Um crime de mando contra uma mulher indefesa, que posteriormente foi culpabilizada
pela própria morte, na revista Manchete foi dito que ela “falava demais” e a
mídia sempre a reduziu às tais “polêmicas”.
Almoço de Comemoração ao Dia Internacional da
Mulher em 1989
No dia oito
de março não é comum evocar a lembrança da jornalista Maria Nilce Magalhães e
suas ações pioneiras em prol da valorização do empreendedorismo feminino
capixaba. Deu trabalho calar a fera, mais trabalho ainda tem a elite para apagar
sua presença da memória do povo. Mas, sabe minha mãe? Eu, que nunca me dirigi à
senhora sua pessoa assim publicamente, estou ainda por aqui pra lembrar com
saudade e com carinho da sua genialidade e de suas birutices – a Milla que
virou gringa diz que você era gifted -
e sei que tem um montão de gente bacana por aqui que se lembra de você assim
também.
Quando
comemoramos mais um Dia Internacional da Mulher, primeiro de tudo devemos orar,
rezar ou meditar pela presença invisível ou mesmo a ausência de tantas e tantas
mulheres impunemente espancadas, violentadas e assassinadas. Em seguida peço ao menos um pouco de respeito
à vida e à memória dessas vítimas, quase sempre perseguidas e difamadas,
simplesmente por representarem a fragilidade nessa cadeia. E desejo que todas
as mulheres tenham, sempre, o verdadeiro direito à liberdade de expressão e
dignidade para viver e ser o que quiser e fazer de seu corpo e da sua história o
que melhor lhe aprouver!
Segue o
texto escrito por Maria Nilce:
No Dia
Internacional da Mulher, quando esta cronista realizava um almoço para mais de
quatrocentas mulheres, no salão do Alice Hotel, seu proprietário, Toninho
Neffa, avisado anteriormente por telefonemas anônimos de que alguns gays iam
até lá acabar com a festa, assustou-se com a presença de dois indivíduos
estranhos que entraram no hotel sem camisa e pensando ser os travestis
telefonou para a polícia e pediu reforço.
Soubemos
depois que o autor dos telefonemas foi o comerciante Jadyr Primo, que também
ensaiou a molecagem de mandar travestis para a porta do hotel para jogar pó de
mico nas senhoras. Ali dentro do Alice estavam senhoras do maior respeito,
todas dignas da maior admiração. Sobretudo, senhoras de idade como dona
Josefina Hilal, como a mãe de Lourdinha Raizer, entre outras que não mereciam
passar pelo susto que passaram.
Eu espero
que as mulheres que estiveram naquele almoço não esqueçam do mal que ele me
fez, pois desde as nove horas da manhã que este indivíduo passa trotes para
minha casa, fazendo terrorismo e eu, apesar de saber de tudo, estive à frente
do almoço, sorteando brindes, homenageando as aniversariantes, cuidando para
que nada estragasse o brilho daquele dia que era só nosso e para que todas
mulheres ali presentes não fossem perturbadas em nada. Se entrasse alguém para
estragar a nossa festa, eu me jogaria na frente para defender as mulheres que
ali estavam convidadas por mim.
Eu morreria
por elas...
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Último registro de Maria
Nilce com seu filho Juca Magalhães: foto de Heitor Bonino |
Maria Nilce Magalhaes foi
morta a tiros no dia cinco de julho de 1989, o julgamento de alguns dos envolvidos
no assassinato levou quase vinte e cinco anos, as investigações não apontaram
os principais mandantes do crime.
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A investigação do crime contra Maria Nilce foi marcada por afirmações preconceituosas à mulher e propositadamente abagunçada, vide a manchete de A Gazeta |
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Início da desrespeitosa reportagem da Revista Manchete |
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Jornal do Brasil |