Afonso era filho de
uma família tradicional de imigrantes portugueses, donos de propriedades em
áreas nobres da cidade e estabelecimentos comerciais importantes. Gostava de
enfatizar um traço espanhol qualquer que havia em seu sangue, nunca entendi
muito bem porque, parecia uma implicância qualquer com sua gente da terrinha,
mas não tinha nada a ver com o estereotipo brasileiro de português não ser
muito inteligente ou coisa que o valha.
Afonso era um cara que
mascou, apesar da fortuna e de ser “bem nascido” não deu pra nada das coisas
práticas da vida e, não sei se por isso, virou uma fruta às vezes azeda, às
vezes amarga. Também não sei se estudara a ponto de ser formado em alguma coisa
ou professar uma profissão, nem que fosse de professor. Por conta da fortuna da
família nunca precisou trabalhar e muito menos o quis. Casar também não casou,
aliás, sua orientação sexual, digamos assim, era muito temerária em sua
juventude e maturidade, passível até de punição com cadeia.
Atravessou a vida
ligeiramente bêbado - muitas vezes completamente - mas seu auge foi nos anos
setenta, quando usava os cabelos castanhos um pouco compridos e grossas
costeletas de Mi Buenos Aires Querida.
Ora, não só pela fortuna que herdara, algumas mocinhas casadoiras o achavam
atraente e passível de um flerte. Não, nunca foram e nem seriam correspondidas.
Afonso viveu foi uma paixão alucinada com um rapaz bastante humilde que
trabalhava em uma peixaria. E pensaria com desgosto seu pai se fosse vivo: mas
esse bosta nem sequer é o proprietário do estabelecimento?
Vestia camisas de
cetim estampadas, mas de cores sóbrias e grossos cordões de prata, nunca seria
visto de calça jeans e tênis, quando muito um chinelo de Franciscano. Muito
menos daria a doida de se vestir de Cinderela, mas no fundo esperava o príncipe
encantado chegar para resgatá-lo daquela miséria toda e serem felizes para
sempre.
Por saber que seus
sonhos nunca se realizariam, era cínico e sarcástico para com as pretensões do
alheio, parecia supor e até desejar que todo mundo fosse dar em nada exatamente
como sua vida dera. Esse seu aspecto era bastante detestável, mas fora moldado
à custa de muito sofrimento, sozinho desde pequeno em instituições de ensino
onde foi sumária e reiteradamente surrado e seviciado. Em seu sono falava e
soltava gritos sonâmbulos, não se sabe se de terror ou de prazer. Talvez os
dois.
Gostava de ler e de se
deixar ver enfiado e compenetrado em livros; obviamente, ele mesmo nunca
escreveu nada, nem mesmo memórias, porque acreditava realmente e por toda a
vida que fosse o que fizesse jamais iria resolver coisa alguma. Para ele o
mundo não tinha jeito. Era condenado a dar o desprezo porque entendia que aí
residia sua verdadeira herança, no abandono e na desilusão. Aliás, sofreu muito
quando seu peixeiro o trocou por um funcionário público federal, um rapaz mais
jovem que acabaria um dia assassinado de maneira tenebrosa em um daqueles
encontros amorosos “proibidos e inconfessáveis”.
Não era um cara muito
falante, era reservado, mas depois de umas biritas - e quando se sentia seguro -
gostava de contar histórias picantes de seu universo homossexual. Falava
especialmente de um amigo que, muito diferente dele, resolvera contrair o
matrimônio e até gerara filhos “cada um mais lindo do que o outro”, comentava
com espanto e talvez despeito. O amigo casou, mas, disse ele, nunca se vira no
mundo pessoa mais sexualmente degenerada. Passou quase toda a festa das bodas
dentro do banheiro dos homens servindo aos convivas, sim, e ainda rebatia com
uísque. Era, como lembrava divertido em suas recordações, “uma Messalina
desvairada”.
Um dia Afonso morreu -
incógnito como atravessara toda a vida - sem deixar herdeiros para seus
vencimentos que devem ter ido parar nas mãos daqueles que mais desprezava e que
aqui não fazem nenhuma diferença. O encontrei por acaso pouco tempo antes disso,
suponho, porque também nem sei direito quando se deu a libertação de seu longo cativeiro. Eu estava olhando
um disco de Chabrier numa loja do Centro da Praia e mostrei para Afonso que deu
a entender que já conhecia, talvez por não admitir alguma pequenez em seu saber
enciclopédico, ainda mais perante um guri como eu.
Conversamos depois
sobre os velhos tempos e que muitas senhoras falavam de uma pessoa em comum com
saudades. De seu jeito amargo que aparentemente se acentuara ao ver o ocaso à
menor distância, Afonso me respondeu quase às lágrimas:
- Elas mentem Juca, as
mulheres mentem...
O tempo voava, então
voltei para o escritório onde trabalhava e peguei o carro; indo para casa
passei pelo mesmo lugar onde nos encontráramos que ficava bem perto e o vi,
indo embora também. Era o início da noite num dia de semana qualquer. Afonso
tentava a travessar a rua, agora mais acentuadamente bêbado que um gambá. Soltava
palavrões trôpegos e discutia com os carros velozes na penumbra da noite,
parecia um maluco enquanto ajeitava a camisa de seda que devia ter se
enganchado por acidente na bicicleta de um passante qualquer.
Depois Afonso sumiu, eu
sei lá, deve ter virado fel...
2 comentários:
Meu caro Juca:
Quantas Messalinas Desvairadas já cruzaram meus muitos outonos, quantos Afonsos...
Naqueles tempos, sem tanta ousadia como nessa nossa Era de Arco-Iris e Paradas Monumentais.
O seu Afonso ibero-lusitano também não me é desconhecido. Que mundo pequeno!
Machadinho
PS. Como velho Professor aposentado e pai de peças ímpares como Piuí e Picolé, MAGOEI ! no segundo parágrafo.
Veja só você, velho pirata dos caribes, eu sou professor também e quis só fazer um trocadilho. Magoa não...
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