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quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A FIGUEIRA E O BAMBU - RESENHA

Contada com uma pulsação interna difícil de ver em outros dramas hollywoodianos A Cor Púrpura teve onze indicações ao Oscar e não levou nada, injustiça seria muito pouco para classificar o caso. A academia de Hollywood, talvez por implicância com Spielberg ou racismo, ou os dois, resolveu premiar o elegante “Entre Dois Amores” do recém falecido Sydney Pollack, curiosamente um mega romance de brancos europeus na África roubou a festa de uma história afro passada na América.

A música do filme ficou por conta de Quincy Jones, que após conceber o álbum Thriller (1980) de Michael Jackson – e ter vendido mais de 51 milhões de cópias! – passou a ser considerado o mais poderoso produtor do showbizz. Conhecido ativista negro, Jones aparece, no ótimo filme-biografia de Ray Charles, como um personagem importante na história do genius cego da música norte-americana.

É natural imaginar que a música desempenhe um papel condutor na história e que dê suporte à atuação desses seres humanos em estado de graça interpretativa: o maestro não decepciona. De maneira delicada, sutil e muito bacana, por exemplo, nos é dada uma explicação para a fusão da música popular com o gospel, coisa que foi intensamente criticada e combatida por várias facções religiosas, até se tornar comum e, em muitos casos, exagerada.

“Os pecadores também têm alma”.

Metade do filme é aprisionamento e opressão, quando se dirige para o final os personagens vão alcançando liberdade, dando e recebendo perdão. O ápice se dá quando, lideradas pela desviada filha do pastor, uma multidão sai de um cabaré e invade a igreja, unindo suas vozes à das fiéis ovelhas, trazendo bateria, metais, guitarra, uma divina celebração da vida e da fé em sua totalidade.

E por falar em música agora lembrei de Porgy and Bess (1935), a “ópera folk” de George Gershwin, em que o elenco é também praticamente composto por negros. Imagino o que deve ter pensado a maioria branca de um filme em que só aparecem para fazer papel de racistas ou aparvalhados mal feitores que ferem sem nem se dar conta do sofrimento que estão infligindo ao seu semelhante, justamente por considerá-lo muito diferente, praticamente um outro tipo de animal.

Coloque nesse caldeirão que Steven Spielberg era reconhecido como diretor do “cinema pipoca” mais bem sucedido da época, como Tubarão, E.T., Indiana Jones e por aí vai. Ninguém seria capaz de considerar tão sério um trabalho vindo de suas mãos. E tem hora que Spielberg escorrega na pipoca, como na cena em que Celie encontra a filha, nos braços da distinta esposa do pastor. Estava exposta a dor da separação, a injustiça, mas logo somos surpreendidos pelo carão de um homem que dá um susto na moça, como se o diretor quisesse fazer uma graça pra quebrar o clima tenso. Foi um arremate de filme de sessão da tarde, mas eles felizmente são minoria.

A abundância de temas pesados é um outro problema, de vez em quando a coisa ameaça virar dramalhão: a opressiva história de uma minoria negra, da mulher que na época era tratada como capacho e até a pedofilia que é tão discutida em nossos dias (o padrasto das meninas abusava delas desde pequenas). Quando você pensa que já tá bom de polêmica, Celie descobre o que é o amor nos lábios da amante de seu marido/patrão, aliás, uma cena delicada, sugerindo que até algo mais pudesse ter acontecido do que um simples beijo. Mas mais do que carinho, a nova amiga vai proporcionar a Celie uma mudança de atitude e o nascimento do desejo de se libertar.

Existe uma parábola oriental em que um sábio ensina que é melhor ser flexível como o galho do bambu do que rígido como a grande figueira, que não se curva sob a tempestade, então se quebra e tomba. É aí que aparece a Sofia - vivida pela apresentadora Oprah Winfrey - uma mulher valente que não leva desaforo pra casa, não aceita apanhar de homem e não corre de uma briga. Ela é exatamente o oposto da submissão sofrida de Celie e paga caro por seu jeito de ser: a sociedade a quebra, derruba, enquadra. Mostra que o seu lugar é de cabeça baixa ou então na guilhotina.

Claro que tem muita gente que prega o contrário: “A provação vem, não só para testar o nosso valor, mas para o aumentar; o carvalho não é apenas testado, mas enrijecido pelas tempestades”. (Lettie Cowman) Ou como já dizia Che Guevara: “Há que se endurecer, porém sem perder a ternura jamais”. Quando se vai enfrentar uma batalha é preciso levar em consideração o poderio do inimigo e então escolher, quando há essa opção, entre a honra ou sobreviver na desonra. Darwin, certamente, classificaria o último como mais sábio.

Então a Cor Púrpura é a história dessas pessoas, contada através de suas escolhas e do resultado que obtiveram com suas ações. Podemos tirar inúmeras lições desse filme e de sua trajetória pelo mundo, o que talvez explique a longevidade de sua popularidade. É um filme bambu: enquanto a grande e pomposa figueira dos brancos levou todos os prêmios da academia e lentamente caiu no esquecimento, a trajetória de Miss Celie continua por aí dando ibope, entretendo e dando à gente o que pensar e escrever.

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