O tempo recuperado aos idiotas, o mundo está repleto deles, montes, zilhões de imbecis. Um som trinou perto de mim e disparou o gatilho da memória. As máquinas de escrever, tec, tec, tec, tlin! Convivi com esse som desde a mais tenra infância, mas a lembrança que me veio foi de um senhorzinho endemoniado que trabalhava numa sala próxima à minha. Não o desprezava simplesmente porque ele era um velho, como a maioria fazia, ele é que era detestável mesmo e se não fosse assim já estaria morto. Ele se alimentava das confusões que criava à sua volta, se guardasse suas frustrações dentro do peito o coração já não teria agüentado há muito tempo.
Pagava muito caro quem tinha de conviver com sua detestável figura. Um pulha, um medíocre, todos o sabiam, até ele, por isso era tão detestável: porque não agüentava mais chafurdar na própria lama. Não ser ninguém era uma tortura, por isso precisava do reconhecimento alheio, não no sentido de distinção, mas de ciência de sua presença e essa só vinha após seus barracos lamentáveis, só assim o percebiam, o notavam. Era um babaca notável e ainda por cima era um velho. Nas festas e inaugurações lá ia ele atrás dos organizadores para ter o nome citado nos agradecimentos às pessoas importantes, ficava furioso quando recebia de volta aquele olhar de escárnio e desprezo, o que ele interpretava como inveja, mas mais furioso ficava quando a expressão era de pura perplexidade ou ironia.
- Como assim? Você não sabe quem eu sou?
- Eu sei amigo... E você sabe?
Via sua secretária indo e voltando com uma folha de papel nas mãos, ele estava ditando um ofício e nunca ficava satisfeito com o texto. Mas foi nessa que ele se fudeu, que caiu na real do tempo irrecuperável. Olhava com desdém a secretaria se afastar de volta para sua sala a fim de realizar as correções que apontara, parecia se divertir fazendo isso só de sacanagem, só para poder vê-la dando meia-volta e se afastar rebolando o pandeiro. Segundos depois ela voltou com o texto corrigido.
- Ué, mas já?
- Eu fiz no computador.
- Ah...
Que decepção, nada mais do tec-tec das máquinas de escrever, nada mais de ter o prazer infantil de mandar a secretária bater um ofício enorme várias vezes por conta de uma ou duas vírgulas idiotas. Recostou-se na cadeira entediado, olhou o texto em cima da mesa a secretaria ainda o fitava paciente como se o ofício fosse um mingau e ela fosse a sua babá. Que graça tinha em mandar a secretária rebater o texto se ela não ia mais o rebater? Computadores de merda, maldita modernidade. Lembrou de um trocadilho idiota muito em voga na época: computador não fala, só computa.
Acho que as pessoas se incomodam com os velhos porque suas presenças lembram aos jovens que um dia eles serão velhos também. As pessoas de mais idade, pra piorar, gostam de ressaltar sua experiência dizendo aos jovens que o tempo passa rápido. Por quê essa preocupação com a velocidade se perdemos tanto tempo com coisas e pessoas idiotas? Lembro de Buda, sim, o príncipe Sidarta Gautama, a quem os pais tentaram impedir de ter contato com as agruras do mundo: feiúra, pobreza, doenças. O jovem vivia trancado no palácio onde cuidavam para que tudo ao seu redor fosse sempre perfeito, nunca tinha visto sequer uma flor murchar e morrer... A presença dos idosos nos obriga a saber que um dia também iremos por esse mesmo caminho e que ele aumenta cada vez mais a sua velocidade e que se hoje não temos mais o tec-tec das máquinas de escrever temos muitas outras formas de ver o tempo se perder.
In recovered time: Alteridade é o pressuposto de que todo homem social interage e interdepende de outros indivíduos. (fonte Wikipédia).
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