Era uma vez um homem muito
inteligente, pelo menos aparentemente todo mundo considerava o seu intelecto
acima da média. Só o fato de ter alcançado esse reconhecimento em seu grupo era
já uma prova de que alguma peculiar habilidade havia, afinal, são poucos
aqueles vistos como antítese benevolente da tão criticada ignorância, os
trivialmente denominados burros, antas ou paquidermes em geral.
Esse homem –
sei-lá-porque – quando gostava de algum assunto, passava a tentar dominar
teoricamente tudo o que tinha pra saber a respeito. Devorava todos os
livros, decorava longos trechos incompreensíveis e quando os explicava e se
enrolava – o que era frequente - simplesmente inventava. Sabia que os mistérios
do mundo encantam a todos porque trazem muito mais perguntas que respostas.
Era inteligente como o diabo! Talvez por isso nem todos gostassem dele...
Era inteligente como o diabo! Talvez por isso nem todos gostassem dele...
Sem perceber motivo o olhavam de soslaio, cochichavam às suas costas e lhe queriam mal. Era estranho. Perdido num mundo que o satisfazia, nunca parara para escanear a vida dos outros; o centro do universo era seu umbigo e seu cérebro uma fonte de luz imaginária. Então, fora de sua redoma, raramente encontrava alguma coisa capaz de merecer elogio e quando criticava era duro, renitente e diabolicamente perspicaz.
Seus desafetos não
ficavam atrás... Distribuíam fermento aos “importantes” que inchavam à prática. Enquanto
isso vasculhavam a vida pessoal do outro e se nada descobriam de picante ou
escabroso: inventavam também. Sabiam que
as pessoas dão crédito a maledicências, mais do que à qualidades e virtudes. O
homem percebia a mudança no olhar de pessoas, o distanciamento, mas tinha um
tédio enorme de ficar a se explicar e a se defender de mentiras.
E é um perigo deixar as pessoas entregues às suas próprias conclusões...
E é um perigo deixar as pessoas entregues às suas próprias conclusões...
Então dava de lembrar
coisas ruins do passado e nutrir medo do futuro, sentia maus presságios resmungarem
ao estomago e depois os trazia à boca para ruminar. Fazia isso com frequência e
quando lembrava o mal que lhe haviam feito se irritava como se estivesse
acontecendo naquele instante, mas depois esquecia; em dado momento sentia algo
incomodando sua alma, uma agonia, era apenas a lembrança da desfeita infeliz espetando
por dentro.
Pensou que era preciso
perdoar e esquecer; sentia-se mais importante assim, porém impotente ao imaginar
o fato; infelizmente não conseguia esquecer esses aborrecimentos. Embora já
perto da velhice, ainda guardava o nome de uma professora do primário que uma
vez o maltratara. E, ao mesmo tempo, não fazia a menor ideia de como se chamava
outra muito bondosa com quem adorou conviver.
Quis passar com o
carro por cima daquela, já velha, atravessando a rua com firme dificuldade. O
tempo só fizera acentuar a carranca, expressão consolidada de azedume. E era
pra ter pena? Pensou que era e em, novamente, perdoar. Que diabo! O carro
estava engatado na primeira, nunca tinha paciência de esperar o sinal em ponto
morto. Começou a acelerar, a mulher vinha já no meio da avenida, era só avançar
o sinal e passar por cima – tlum-lum, tlum lum! – que nem num quebra-molas.
Assistiu impávido e
perplexo o desfile lento e doloroso do passado, bem na frente do seu carro,
diante dos seus óculos, debaixo de seu nariz adunco. O surpreendia, inclusive,
ter reconhecido a mulher após todos aqueles anos. Mais do que tudo, o intrigava
ainda querer seu mal tão intensamente e sentir por dentro uma certeza insana
que aquela pessoa não merecia mais viver.
“Não vou conseguir passar
por cima!” Pensou entre frustrado e resignado, as mãos apoiadas sobre o volante.
Então, esperou o sinal se abrir e seguiu em frente.
Depois reviveu a cena,
a mulher com a lentidão angustiante de quem acumulou nas costas as decepções
que imaginou ser importante causar; parecia aterrada, soterrada: um lixão;
suportando o peso da existência, trato aceito talvez muito cedo em sua vida.
Nunca foi capaz de sentir-se plenamente amada, nem pelos seus. Não conseguiu
construir relação, só frustração. E assim existia, atravessando aquela avenida,
domingo, sete horas da noite.
Então aceitou o
sentimento de pena como verdadeiro, mas não podia perdoar a mulher. Será que
deveria parar o carro no meio da avenida e chamar a antiga professora às falas,
adotar uma postura benevolente e disparar um sonoro e sincero: “eu te perdoo”? Alguma
coisa argumentou dentro de sua cabeça que, se não era assim, então era preciso
perdoar em seu coração e se livrar de vez daquela “inhaca”.
Ora – pensou – se é
preciso curar essa “inhaca” dentro de mim, o verdadeiro problema não é algo
ruim que me fez uma pessoa frustrada: sou eu! Foi nessa hora que nasceu a
suspeita – nasceu já confirmada - de que toda aquela inquietação nada mais era
do que pena de si mesmo. Todo aquele remorso guardado desde a infância era um
espelho quebrado com pedaços esfregados diante de seu nariz adunco.
Era inteligente, mas,
como muitos, sempre demorava um pouco até chegar às conclusões mais óbvias...
Um comentário:
Prezado Juca.
Parabéns!
Seu texto está cada vez melhor.
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