Estou
lendo o “Diário Selvagem” de Carlinhos Oliveira (José Carlos Oliveira
1934-1986), escritor que saiu de Vitória ainda adolescente e fez carreira como
cronista do Jornal do Brasil. Já ouvira falar muito de Carlinhos, mas nunca
tivera em mãos alguma obra sua. Venho lendo devagar, porque são memórias
pessoais e não uma história propriamente organizada: esbórnias intermináveis,
muitos problemas de saúde, episódios amorosos frustrados perpetrados por um
sujeito sexualmente inseguro, nanico (1,59m) e magrelo.
Os
comentários iniciais são muito centrados na vida sexual e são também, muitas
vezes, surpreendentes. Como quando Carlinhos confessa, por exemplo, suas
recorrentes fantasias homossexuais, Página 21:
“20 de setembro, domingo – No Degrau [1]um
rapaz me tascou um beijo na boca – beijo de amante. Ainda estou deveras
perturbado. Qualquer hora dessas, as circunstancias ajudando, enfrento o
problema homossexual.”
Vais saber a quais
circunstancias Carlinhos se referia e também não fica claro se a questão
homossexual era realmente “problema” ou solução, vide página 39.
“Espero
que X. me chupe o pau daqui a pouco. Relaxa. Ela me disse que o Z. só pensa em
sacanagem (não bebe, não fuma, adora uma suruba e sonha com um garotinho que o
enrabe. Eu também, de vez em quando...)”.
DE VOLTA ÀS TERRAS
CAPIXABAS
O
diário fica mais interessante para nós “os capixabas” quando Carlinhos vem para
o Espírito Santo passar alguns dias de férias (Página 93 em diante).
No
dia 10 de setembro de 1978 escreve de Vila Velha, estava hospedado na
residência oficial do Governador Élcio Álvares (nascido em 1932), seu amigo de
folguedos juvenis. O escritor estava em plena loucura do lançamento daquela que
seria sua obra mais célebre Terror e
Êxtase, particularmente chamada de 1001. Carlinhos demonstra carinho e
admiração pelo atual presidente da “Banestes Seguros” e sua família, o que não
o impede de acalentar fantasias sexuais com relação à noiva de Elcinho. Fala
também com respeito do encontro com jornalistas como Amylton de Almeida, Maura
Fraga e Sérgio Egito. Demonstra, porém, pouca condescendência com outras
figuras da sociedade local.
Seus
comentários jogam um facho de luz sobre certa “elite intelectual capixaba”
formada por professores universitários e autores ligados às instituições governamentais,
mais respeitados pela posição social que ocupam do que pelas obras que
publicam. Acadêmicos interessados em legitimar e institucionalizar o valor de
seu próprio trabalho e de alguns autores escolhidos entre seus pares. Não
haveria problema nenhum nisso se esse grupo não se comportasse como se os
outros escritores não tivessem a mesma capacidade ou qualidade e, pior ainda,
esse fato ser largamente aceito como “oficial”. Aliás, não me recordo sequer
dessa “convenção” ser questionada por outros autores, talvez por temer um
suicídio literário. A tendência é fazer como os mais inteligentes: aceitam a
situação, elogiam e adulam essa “elite” para tentar obter reconhecimento de
seus escritos. Porque, obviamente, só os integrantes desse grupo são convidados
a participar (ou indicar autores) de eventos literários, somente seus livros
são selecionados para distribuição em escolas, indicados para o vestibular e
por aí vai.
Carlinhos
pergunta: “Não é uma sacanagem”?
Sim,
porque aquele “rebelde precoce”[2]
criado em Jucutuquara dificilmente teria alcançado o reconhecimento desses
intelectuais como escritor se tivesse ficado em Vitória.
LITERATURA DE RICO
Segue
a reprodução do referido comentário de José Carlos Oliveira, página 101:
“14 de setembro, quinta-feira, 16h – Victor (Martins) me mandou o romance de um capixaba
que admira, A Crônica de Malemort, de
Reinaldo Santos Neves (Nascido em 1946, Vitória). É filho de Guilherme Santos
Neves, um dos professores de português (o outro é Clóvis Rabelo) que me
humilharam no Colégio Estadual – no 1º ano ou talvez no 2º - porque eu andava
lendo Machado de Assis. ‘Você não tem idade para compreender Machado, rapaz’, disseram
eles, expondo-me à zombaria da classe. ‘Leia José de Alencar’, sugeriram. O
jovem Reinaldo porém tem garantida a circulação de sua literatura nos colégios
capixabas. Isso significa dinheiro no bolso e uma certa estabilidade
profissional. Pois está relatado na orelha. Elogiando o Malemort, ‘outro
importante ficcionista moderno e professor universitário’, José Augusto
Carvalho, prometeu ao artista: publique logo que vou adotá-lo no Colégio
Estadual e na Faculdade. Assim ele começa com um público compelido a lê-lo. Não
é uma sacanagem? Mas isso acontece em todo o Brasil e só espero que Reinaldo
seja mesmo um escritor talentoso. (página 102) Apontamentos fúteis e nada mais,
merda. Vou ao ‘Réveillon’[3]
– ou ler o tal Malemort, literatura
de rico, circulação de estilo oligárquico”.
Que
Reinaldo Santos Neves é um escritor talentoso, disso ninguém duvida. Parece,
inclusive, ter tentado se descolar ao longo do tempo do peso dessa imagem
reverente que lhe impingiram seus admiradores e outros literatos aspirantes.
Talvez por isso ainda não integre a vetusta Academia
Espírito Santense de Letras; atitude que, por outro lado, dá margens ao
raciocínio lógico de ser esse um título que em nada acrescentaria à sua posição
como autor.
POUCO ANTES DE MORRER
É
curioso pensar que menos de uma década depois Carlinhos voltaria ao Espírito
Santo para participar de um projeto como “Escritor Residente” do qual sairia o
livro “Bravos Companheiros e Fantasmas”
e coube ao autor de Malemort a
redação de uma “Nota Final” e a involuntária descrição dos últimos momentos daquele confrade
em letras de fama nacional:
“Dez dias antes de sua morte
(Carlinhos) concluiu a revisão definitiva das provas paginadas e preparou o
texto das orelhas e o conto para a contracapa, que leu com emoção na última
oficina literária que estava coordenando, também como parte do projeto Escritor
Residente. No hospital ainda houve oportunidade, entre um cigarro proibido e
outro, para aprovar o layout final da capa e contracapa, já com o desenho
(sugestão sua) do pássaro enigmático. Fez por seu livro, portanto, tudo que lhe
cabia fazer”.
RETOMANDO ÀS CONCLUSÕES
Ao perceber
a valorização de uma obra com base numa ligação “oligárquica” (termo contundente
e perspicaz, porque se remete a um: “regime político em que o poder é exercido
por um pequeno grupo de pessoas, pertencentes ao mesmo partido, classe ou
família”), José Carlos Oliveira conclui conformado: “isso acontece em todo
Brasil”. Pois, é possível ir-se ainda mais longe: esse episódio retrata
acomodações sociais triviais que sequer parecem condenáveis; como,
infelizmente, muitas vezes acontece com o nepotismo ou a corrupção. Antigamente
escancarado, como revela o comentário do autor, esse “jogo”
com o tempo ganhou ares democráticos: formou-se um grupo com as pessoas de
sempre que continuaram a realizar escolhas a partir de gostos e interesses de sua casta, privilegiando familiares e amigos, ao mesmo tempo prejudicando, desmerecendo e relegando
ao esquecimento o trabalho de desafetos e outsiders:
a popular panela.
Estaríamos romanceando a realidade? Parece que sim, dado o absurdo; mas é provável que não, dado a própria realidade.
E por aqui ficamos, meditando sobre a razão de certas coisas serem como são...
No
próximo texto Carlinhos vai tecer seus comentários de soda cáustica sobre o
colunismo social botocudo: “Depois eu conto”...
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