“Trajetória de um músico que se destaca no cenário nacional provoca uma
reflexão: quantos compositores e artistas extraordinários se perdem devido à
falta de oportunidades?”
Texto publicado ontem (20 de outubro de 2012) no caderno Pensar de A
Gazeta.
Por Juca
Magalhães
No Rio de Janeiro existe uma Associação de Violões
criada para promover o ensino do instrumento mais popular do país com projetos
sociais, um programa na Radio MEC (Violões em Foco), saraus e que realiza anualmente
desde 2003 uma seleção de “novos talentos” destacando um compositor brasileiro
e oferecendo premiações em dinheiro aos três primeiros colocados. Nesta edição
de 2012, cuja (cuja?) abertura aconteceu no último dia 20 de outubro, o homenageado
é o capixaba Marcelo Rauta.
Graduado e mestre em composição pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
- UFRJ, premiado em concursos e autor de obras para várias formações da dita
“música clássica”. No final de 2011, Marcelo Rauta lançou o disco Rerigtiba, uma
amostra de suas peças, sobretudo, para violão. Teve, também nesse ano, o seu
Salmo 100 incluído na turnê internacional do coral Canarinhos de Petrópolis que
postou no Youtube um belo registro em vídeo apresentando a música de Rauta numa
catedral em Bonn.
COMPOSITOR NO INTERIOR
Talvez mais incrível que o prolífero talento desse jovem capixaba ainda
desconhecido de seus conterrâneos seja a história de sua vida. Longe de ser
educado em um rico ambiente cultural que se imagina forjar os grandes compositores
de música de concerto, o menino nasceu em Guarapari (05/03/1981) e logo foi
morar na zona rural da cidade vizinha, Anchieta. Um município que em 2010
(segundo o site da Prefeitura) tinha pouco mais de vinte e três mil habitantes.
Após terminar a quarta série primária veio
uma mudança importante, para prosseguir nos estudos o menino passou a morar com
a mãe na sede do município. Marcelo tinha então em torno de dez anos. Um dia
brincando na casa do colega Paulo Henrique Cunha Gonçalves viu lá um
instrumento que despertou sua curiosidade...
- O que é isso?
– É um teclado... Serve para fazer música.
- Música? E o que é música?
- Ué, você nunca viu o Caçulinha tocando no Domingão do Faustão?
Criado na fazenda Dois Irmãos, sem energia elétrica muito menos
televisão, Marcelo não conhecia nada daquilo. Seu amigo ligou o instrumento e
tocou um trecho da nona sinfonia de Beethoven. Desnecessário dizer que o menino
ficou maravilhado com a novidade e propôs um escambo: “eu te ensino matemática
e você me ensina a mexer nesse negócio”. O engraçado é que o compositor confessa
hoje não saber mais nada de matemática e o amigo trabalha como contador.
Logo Marcelo intercalava parte do dia na escola, corria em casa para
almoçar e todo o resto do tempo ficava mexendo no teclado. A mãe de seu amiguinho
era estudante do instrumento um pouco mais experiente e também compartilhou de
boa vontade o que já havia aprendido, mas em pouco mais de um semestre a avidez
musical do menino esgotou as possibilidades da escolinha improvisada. Naquele
momento o destino se intrometeu na história, como nos conta o próprio compositor:
“Eis que surge em Anchieta um projeto que a prefeitura estava
implantando. ‘Música para a comunidade’. Aí, foi daqui de Vitória a professora
Ângela de Souza Cruz, minha primeira professora de piano. Ela viu que eu tinha
talento, começou a me dar aulas e me preparou, inclusive, para a prova da Fames
que na época era ainda chamada Escola de Música. Foi onde eu estudei o terceiro
básico e dali já pulei para o curso superior.”
MÚSICA, NEM PENSAR!
É preciso explicar que, a princípio, o interesse incomum de Marcelo pela
música foi ignorado por seus familiares: não incentivaram, não investiram, mas tampouco
proibiram. Só na hora de escolher um curso superior é que todo mundo resolveu opinar.
Uns diziam que devia estudar medicina, outros achavam direito melhor: mas música?
Nem pensar! Música era coisa de vagabundo, ia acabar desempregado e morrer de
fome. O pior é que nem se pode acusar seus parentes de ignorância, o preconceito
com o “mundo das artes” persiste em todas as camadas sociais.
Junto com o estudo de música Marcelo começou a compor música de concerto,
era como se uma coisa estivesse diretamente ligada à outra, o que geralmente não
é tão simples. Mesmo sem noção das regras básicas de composição (forma,
harmonia, contraponto, orquestração etc) o jovem criava partituras e as submetia
à opinião de músicos mais experientes como os maestros Helder Trefzger e
Leonardo Davi que reconheceram seu talento e o aconselharam a estudar no Rio de
Janeiro, porque no Espírito Santo ainda não havia curso superior de composição
(Só neste ano de 2012 a UFES deu início ao bacharelado na área).
Como imaginar aquele rapaz tímido que mal conhecia Vitória se mudando
para o Rio de Janeiro? Para começar havia a dificuldade financeira - na
primeira vez que tentou estudar na Fames, foi preciso abandonar o curso após
três meses por não poder pagar as passagens – depois havia um concorrido vestibular
para entrar na UFRJ. A princípio Marcelo fez o esperado, concluiu o “segundo
grau” e resignadamente começou a cursar ciências contábeis em Guarapari. Três
períodos depois não aguentava mais. Resolveu arriscar o futuro no Rio, cidade
que até então nem conhecia, e foi aprovado em segundo lugar no curso de
composição dando início aos estudos em 2003.
Para poder se virar na “Cidade Maravilhosa” o jovem compositor fez
entrevista com a assistente social da Universidade e conseguiu provar ser
merecedor da chamada “bolsa auxílio” no valor de apenas trezentos reais para
custear todas as suas despesas: aluguel, alimentação, tudo. Sua família ficou
chocada do rapaz se aventurar numa cidade tão perigosa onde não conhecia ninguém.
Marcelo conta que também ficou com medo, mas logo se acostumou. Achou o carioca
receptivo, os professores notaram seu talento e lhe deram atenção, no segundo
ano conseguiu outra bolsa, a coisa foi melhorando e entre o curso de graduação
e o mestrado passaram sete anos.
UMA INEVITÁVEL REFLEXÃO
A partir de certo momento de sua vida acadêmica o capixaba começou a
colecionar premiações importantes, como consta no site da Academia Brasileira
de Música: “Venceu o ‘Concurso Nacional de Composição para Orquestra de Câmara
– Prêmio Sesiminas de Cultura’. Premiado no ‘Concurso Quintanares de Quintana’
em comemoração aos 100 anos de nascimento do poeta Mário Quintana, com sua obra
para soprano e piano Ah! Os Relógios – obra lançada em livro e CD pela UFRJ.
Venceu o ‘Concurso de Composição Niemeyer – 100 anos’, com sua obra Trio
nº3-Igreja de São Francisco – obra lançada em livro e DVD pela UFRJ. Venceu o ‘II
Concurso de Composição Claudio Santoro para Jovens Compositores’ com sua obra
Psalmus 67”.
Logo após defender sua dissertação de mestrado em 2010, Marcelo ficou
sabendo que haveria seleção para professor substituto dos cursos de bacharelado
e licenciatura na Faculdade de Música do Espírito Santo. Veio, fez a prova e,
como costuma ser, passou. Voltou para ficar perto da família e, numa inesperada
inversão de valores, por questões financeiras. “A concorrência no Rio é grande,
a remuneração de professor ficou mais interessante aqui no Espírito Santo”. Bom
para os alunos capixabas que podem aprender um pouco da arte musical com esse
gênio de trajetória insólita na qual se revela um misto de predestinação com
muita determinação e coragem.
A história de Marcelo Rauta nos ensina muita coisa e provoca uma
inevitável reflexão: quantos outros potenciais compositores e artistas
extraordinários estiveram e ainda estão relegados à própria sorte neste país de
tantas e tão grandes desigualdades? Quantos estão sem acesso à educação, sem força
psicológica para romper as barreiras do preconceito contra sua arte ou encarar as
dificuldades financeiras e conquistar sua independência vivenciando plenamente
seu talento e criatividade? Quanto será que perdemos enquanto cultura com tudo
isso?
No final deste ano a Faculdade de Música do Espírito Santo - Fames vai
publicar em livro a pesquisa de mestrado de Marcelo Rauta que tem o título:
“Reminiscências do Choro N° 10 de Heitor Villa-Lobos na Sinfonietta N° 4 de
Marcelo Rauta: um estudo comparativo.” Não por acaso as obras em questão são de
compositores nascidos no mesmo dia 5 de março, até aonde vão essas
coincidências é difícil precisar. Tudo que sabemos é que Marcelo Rauta é um
nome que evoca uma missão para a sociedade civil organizada: criarmos meios –
que hoje não existem - de fomentar talentos como o dele e os ajudar a se
desenvolver e frutificar.
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