Neste último fim de
semana passou por Vitória o espetáculo “7 Conto a Comédia” com o ator Luis
Miranda; muito mais do que inteligentes e divertidos, os quadros criados pelo
artista visam “quebrar os Rolex do preconceito” e acordar o público para a
crueldade e o cinismo nas relações entre aqueles que têm e não têm dinheiro. Importante
e necessária reflexão porque muitas pessoas são tratadas como cidadãos de
terceira à nossa volta, muitas vezes sem nos darmos conta ou que tenhamos fôlego
para reagir. Recentemente presenciei uma dessas:
Num evento um
professor da rede pública virou para uma menina escolhida para representar os
alunos, muito probrezinha e tímida, e disparou afetado: “Ah, mas você não veio
com essa sandália, né?” Imaginemos que aquela sandalinha estropiada, marca trivial
e profunda de uma triste realidade, não fosse o calçado que a menina mais
desejasse usar. Precisava ter isso esfregado na cara? A menina se encolheu que
nem uma “dormideira” e o rapaz distraído parou de rir quando encontrou meu
olhar entre espantado e indignado. Apesar de ser um pacifista convicto eu estava
prestes a tirar o meu sapato esculhambado e sentar em sua cabeça.
Numa inversão genial,
Miranda conseguiu demonstrar em um texto cômico o quanto o preconceito racial não
tem nada de engraçado, embora rir dele seja caminho para cairmos na real de
como isso ainda é comum. Durante o quadro de Chapeuzinho Vermelho, o ator interpreta
uma menina negra revoltada com a realidade: lembra que os brinquedos, os
heróis, as fábulas, sempre retratam pessoas brancas. Disse que na televisão as
atrizes e personagens têm nomes que remetem à clareza como Branca, Clara,
Cristal, Sol, etc. Reclamou que em sua escola só a colocam pra fazer o papel do
Saci, que se no filme Procurando o Nemo se o peixinho fosse preto o nome seria Procurando
o Demo e que a Rapunzel negra ao invés de jogar as tranças teria jogado um
cipó. E finalmente menciona a única novela da Globo que contou com uma
protagonista negra e o nome era justamente “Da Cor do Pecado”.
A imagem da Rapunzel negra
jogando cipó ao invés de tranças infelizmente me lembrou de um antigo caso de
repercussão nacional envolvendo uma moça chamada Ana Flávia, então com dezenove
anos, filha do Governador do Espírito Santo, Albuíno Azeredo. Pra refrescar a
memória segue um trecho da matéria que foi publicada na revista Veja - Cujo (cujo?)
título “A Cinderela Negra” também calhou de fazer um link com o mundo das fábulas – mostrando o episódio como exemplo gritante
de racismo:
“A estudante Ana Flávia Peçanha de
Azeredo, negra, 19 anos, filha do governador do Espírito Santo, segurou a porta
do elevador social de um edifício em Vitória enquanto se despedia de uma amiga.
Em outro andar, alguém começou a esmurrar a porta do elevador. Ana Flávia
decidiu então soltar a porta e, depois de conversar mais alguns instantes,
chamou o outro elevador, o de serviço. Ao entrar nele, encontrou a empresária
Teresina Stange, loira, olhos verdes, 40 anos, e o filho dela, Rodrigo, de 18
anos. [...] Segundo Ana Flávia contaria mais tarde, Teresina foi logo
perguntando quem estava prendendo o elevador. ‘Ninguém’, respondeu a estudante.
‘Só demorei um pouquinho.’ A empresária não gostou da resposta e começou a
gritar. ‘Você tem de aprender que quem manda no prédio são os moradores, preto
e pobre aqui não tem vez’, avisou. ‘A senhora me respeite’ retrucou a filha do
governador. Teresina gritou novamente: ‘Cale a boca. Você não passa de uma
empregadinha.’ Ao chegar ao saguão, o rapaz também entrou na briga. ‘Se você
falar mais alguma coisa, meto a mão na sua cara’, berrou. ‘Eu perguntei se eles
me conheciam e insisti que me respeitassem’, conta Ana Flávia. Rodrigo ameaçou
outra vez: ‘Cale a boca, cale a boca. Se você continuar falando meto a mão no
meio de suas pernas’. Teresina segurou o braço da moça e Rodrigo deu-lhe um
soco no lado esquerdo do rosto. [...] A polícia abriu um inquérito a pedido do
governador. Se forem condenados [Teresina e Rodrigo], os dois podem pegar de um
a cinco anos de cadeia” (Veja, 7 de julho de 1993). Por Peter Fry: R E V I S T A U S P, S Ã O P A
U L O (2 8): 1 2 2 - 1 3 5, D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 9 5 / 9 6.
A conservadora sociedade
capixaba reagiu com a indignação esperada e também com doses cavalares de
hipocrisia, de repente ninguém na esnobe High
Society tratava com desprezo seus empregados ou manifestava “nojinho”
contra “pretos e pobres”. Teresina Stange, que até então era uma agente de
viagens de sucesso, pioneira do turismo no Espírito Santo, rapidamente virou persona non grata. Alguns amigos até defenderam
a empresária dizendo que naquele dia ela atravessava problemas de saúde que a
desestabilizaram emocionalmente. Não serviu para desculpar o que aconteceu;
segundo comentários da época a empresária e seu filho foram embora definitivamente
para os EUA, provavelmente, lá pros lados do Missouri ou Alabama.
Os Protestos em Ferguson acordaram o mundo para o racismo |
Pena que todo o monumental
bafafá em torno do assunto não bastou para extinguir o preconceito colonial capixaba,
o nosso velado “apartheid”.
Em minha opinião
aquele episódio não fora simplesmente um mero caso de racismo. Eu já encontrara
“Dona” Teresina em duas ocasiões festivas e pude constatar que aquela pessoa –
assim como muita gente daquele meio – tinha o hábito de julgar o outro muito
dura e sumariamente por aparências. A primeira ocasião foi no sorteio de um
“amigo X” e a outra no dia da troca dos presentes. Ao anunciar que eu era seu sorteado
a mulher disse que não me conhecia e que a única coisa que sabia a meu respeito
é que todas as vezes que me via eu estava bebendo. Ou seja: por me encontrar em
duas festas tomando uma bebida qualquer com os amigos, na primeira oportunidade
que teve insinuou para todos que eu era, praticamente, um alcoólatra.
Não estou dizendo que
era o caso de Teresina Stange, mas conheço muitas pessoas da dita “High” e muitas vezes nem tanto que adotam
um peculiar veneno social, como o fez aquele professor, inferiorizando o outro em
busca de diversão e auto-afirmação. Atitude lamentável que hoje é politicamente
reprovável, mas continua admirada, reforçada e reproduzida, especialmente em
programas de futilidade da televisão. A notícia de pequenas grosserias – e
especialmente as grandes - divertidamente circulam entre a autodenominada elite
e acabam adotadas pelos periféricos que a servem e eventualmente frequentam
aquele universo “de charme e glamour” onde, curiosamente, o respeito ao
próximo, a educação e a cortesia não são muito praticados.
Uma prova de que parte
da high capixaba dos anos 1990 assimilaria
o susto com naturalidade foi que, muito rapidamente, a agressão a Ana Flávia foi
transformada em piada. Obviamente, no sentido contrário do que fez Luis Miranda
em sua peça. Bem longe ainda estavam os anos politicamente corretos; infelizmente
o preconceito racial ainda existe, mas é cada vez mais denunciado e discutido. Vide
nesse instante a polêmica gerada no caso de racismo contra o goleiro do Santos
num jogo contra o Grêmio em Porto Alegre.
Chamando o Aranha de Macaco para todo o Brasil |
No escritório em que
eu trabalhava um amigo, branco, de olhos verdes, veio me contar divertido que
tinham conseguido resolver o problema de elevadores no prédio da confusão com a
filha do Albuíno.
- É mesmo? – Perguntei
- Fizeram o quê?
- Agora só os
moradores e as visitas podem utilizar o elevador social e o de serviço.
- E o resto do povo
que trabalha no prédio, vai subir como?
- Então, pro resto eles
penduraram um cipó do lado de fora...
Um comentário:
Oi, bom dia! Como vai? Nossa, que bacana este post. Concordo contigo em gênero, número e grau. Embora as pessoas neguem o racismo, ele existe sim. Acho que atitudes racistas são abomináveis e este tipo de atitude não pode persistir em nossa sociedade, é preciso dar um bata nisto. Eu sou um novo autor e faço oficinas literárias nas escolhas municipais e estaduais da minha cidade, e o foco destas atividades é justamente o combate ao racismo e toda e qualquer discriminação. Parabéns pelo post, sorte, luz e literatura, sempre!
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