Páginas

domingo, 19 de julho de 2009

PERSEGUIÇÃO

Também entre os diabos há livros de duelos,

porque o autor que o fez é filho de vizinho do inferno.

Guevara, O Diabo Coxo.


O que chamava atenção em Roberta é que ela tinha grandes olhos castanhos, quando piscava parecia coisa de desenho animado japonês ou retrato de alguma cocote francesa. Não dava pra dizer que era uma garota bonita, a juventude talvez fosse sua aliada momentânea - Talvez? Muito provavelmente eu diria – Os homens mais velhos têm o costume de classificar suas conquistas apenas pela idade, não importando muito a beleza ou que possuam quaisquer outros atributos femininos desejáveis. Falam para os amigos com orgulho - “rapaz, to pegando uma menina de vinte e dois anos!” - como se só isso já bastasse pra dizer que a garota era linda, gostosa, rica e divertida. Inteligente? A maioria dos homens que conheço não consideram a inteligência feminina um pré-requisito necessário - ou mesmo desejável - para as coisas do amor, mesmo porque, como diria minha mãe: “a amizade só é possível entre iguais”.


Roberta tinha os cabelos curtos e estes eram castanho escuro e lisos, caiam para o lado de seu rosto e se limitavam à altura do pescoço, creio que chamam esse corte de Chanel. Era uma garota alta, de longas pernas, mas sua principal característica, aquela que se evidenciava logo de cara a todos, era a falta de auto-estima. Em sua juventude e relativa exuberância atraía a fina flor da escória que freqüentava a repartição em que trabalhava. Era freqüentemente assediada por “Seu” Adílio, um senhorzinho de pouco mais de meio metro, aposentado, desses que adotaram a agiotagem como passatempo. Do entorno complicado de seus cálculos financeiros, de seus pequenos olhos de ave de rapina, tudo o que ele via no mundo tinha um preço e podia ser comprado; a questão sempre se resumia a valer a pena ou não bancar a aventura. Roberta era tão tímida e rastaquera que declinou de suas investidas com vergonha ao invés de indignação, suas colegas de trabalho – porque nestes lugares onde pouco se faz e acontece, muito se comenta e fuxica - é que disseram o diabo do velho, em pouco tempo até na calçada em frente ao prédio, onde todos iam fumar, já se comentava o fato com virulência dando surgimento até a coisas que nunca aconteceram. Mas algo ainda pior estava por vir.


A chefe de Roberta se chamava Soraia e foi das que mais se indignou com o episódio envolvendo aquele agiota escroto. “Velho sem vergonha” repetia ela entre os dentes quando o sujeito aparecia, magrinho e cara de pau, para destilar suas propostas indecentes à moça. A mulher só faltava pular em seu pescoço para o esganar. Percebendo a falta de forças emocionais de sua subordinada para escapar às investidas daquele abutre, resolveu ela mesma colocar o velho pra correr proibindo a entrada de pessoas estranhas na repartição. Roberta ficou muito agradecida, passou a ver a chefe como uma espécie de anjo da guarda pessoal, logo estavam almoçando juntas todos os dias, trocando intimidades de mulher. Soraia era uma dessas mocréias sólidas e redondas, um barrilzinho que explodia com facilidade, mas com a subordinada, vítima do mundo e suas mazelas, ela era só atenção e mimos. Sempre ouvia atentamente as queixas da moça sobre o marido problemático de quem ela já se separara inúmeras vezes, o filho de três anos que sofria de alguma doença mental e depois dava conselhos maduros e opiniões que a moça considerava muito inteligentes. Carente e ingênua, passou a idolatrar a chefe, uma mulher forte que vencia terríveis tempestades com facilidade e tratava os grandes de igual para igual. Esse foi o bom período que houve entre as duas.


Como Roberta era uma moça meio apatetada, seu elástico marido vai-e-vem, um policial violento e problemático, vivia aprontando de tudo o que se possa imaginar. Chegava em casa doidarásso quebrando as poucas coisas que tinham, depois a moça descobria seus casos pela rua, sofria, chorava, levava o problema para o trabalho o que logo se tornava o principal assunto de fofocas exageradas durante semanas. Soraia aconselhava a protegida a despachar o vagabundo para sempre. “Coloca esse moleque pra correr! Tire esse encosto de sua vida menina! Você ainda é jovem e bonita, tem que arrumar coisa melhor!” Roberta chegava em casa disposta a colocar em prática os conselhos da chefe, só que na primeira vez que juntou as coisas do malandro para colocar na escada do lado de fora da casa, tomou um sacode tão violento quanto inesperado que até baixou hospital.


O barraco desta vez tinha ido longe demais, a família de Roberta – moravam todos em um pequeno prédio num bairro pobre da periferia - entrou na refrega conjugal e conseguiu espanar o policial encrenqueiro da casa onde moravam, da qual ainda falarei melhor mais a frente, ameaçando o denunciar na delegacia da mulher e o caralho a quatro. A moça estava livre de um problema, mas logo apareceu outro: o medo da solidão. Ruim com aquele traste imprestável, pior estava sendo ficar sem ele. A moça começou a alternar momentos de euforia, em que fazia inúmeras bobagens, seguidos de depressão e ressaca moral. Mais chororô no trabalho, mais exposição pública de suas mazelas pessoais, mais junto dela a chefe se achegava. Soraia oferecia o ombro à sua preferida, chamava pra dançar no Bailão do Pedro, até que um dia, depois de uma dessas noitadas, Roberta perdeu a carona e acabou dormindo na casa da grande amiga. Não vou entrar em detalhes, até porque eu não estava lá, mas no fumódromo comentava-se com muito espanto que a chefe, até então uma mulher razoavelmente considerada por todos, tinha partido pra cima de Roberta a fim de ter com ela algo que nunca nem passara pela cabeça da garota.


Como todos podem bem imaginar, depois desse dia a coisa pegou entre as duas no trabalho. Roberta tomou um pavor homofóbico da chefe e esta, quanto mais rejeitada, mais obcecada ficava em devorar aquele petisco que lenta e secretamente vinha cevando fazia meses. Que triste situação: o marido encrenqueiro, o filho doente e a amiga tarada por ela. Logo a moça mergulhou na melancolia, ao mesmo tempo em que Soraia se dava conta de que a tão desejada putaria não ia rolar jamais. Do alto do pedestal jogou então sua santinha na sarjeta; passou a perseguir implacavelmente a antiga protegida: num dia o esporro comia por causa de uma bobagem, no dia seguinte era por conta do contrário. Agora, tudo o que a moça fazia a irritava, sua própria presença melancólica e digna de pena era irritante ao extremo. Se isso fosse possível, ela mesma teria abreviado o sofrimento daquela infeliz. Enquanto isso Roberta definhava a olhos vistos, tinha muita vergonha de dizer abertamente para todos qual era a verdadeira origem de seu problema com a chefe. Quando alguém perguntava o que estava acontecendo ela balbuciava um acanhadíssimo: “nada não”. Foi por essa época que a idéia de “acabar com tudo” finalmente tomou conta de seus pensamentos tristonhos...


Pior que continua...


2 comentários:

Unknown disse...

Putz mermão... resolveu escrever novela tbém... essa de 'Continua' foi foda... kkkkkkkkk... agora só nos resta esperar.

Juca Magalhães disse...

Sim, é só um causo, a segunda parte está entrando agora...